terça-feira, 27 de setembro de 2011

Bocage. A Pavorosa Ilusão: Parte Ia. «Dogma funesto, que o remorso arraigas nos ternos corações, e a paz lhe arrancas; dogma funesto, detestavel crença que envenenas delicias innocentes, taes como aquellas que no céo se fingem»

Cortesia de wikipedia

NOTA: Texto na versão original
Introdução
As Nações, humas já quebráram as algemas
do despotismo, outras não tardaram a erguer
o grito da Liberdade; porque, aquellas
desesperáram de se salvar, estas estam a beber
as ultimas gotas do fel da tyrannia. Por toda
a parte se alevantam os Povos contra a execravel
imbecillidade dos reis e a maldita hypocrisia
dos sacerdotes. Tão iniqua ha sido a
crueldade dos principes e dos frades contra a
especie humana, que esta se decidio em fim
a sacudir, de viva força, o jugo de ferro que
por tantos seculos lhes havia pesado. He já
tempo que nós Portuguezes conheçamos a futilidade
das illusões com que os nossos avós
nos embaláram. Risquemos para sempre da memoria
esses ridiculos preconceitos de que nos
fartou a superstição, com o perfido intuito de
mais a seu salvo nos envilecer. Eia. ...Leamos
com attenção a excellente Epistola do nosso
grande poeta Bocage, que tanto abunda em
salutares preceitos de moral sublime.

A Pavorosa Illusão
Epístola

Pavorosa illusão da eternidade,
Terror dos vivos, carcere dos mortos,
D'almas vãs sonho vão, chamado inferno;
Systema da politica oppressora,
Freio, que a mão dos déspotas, dos bonzos
Forjou para a boçal credulidade;
Dogma funesto, que o remorso arraigas
Nos ternos corações, e a paz lhe arrancas;
Dogma funesto, detestavel crença
Que envenenas delicias innocentes,
Taes como aquellas que no céo se fingem.
Furias, cerastes, dragos, centimanos,
Perpetua escuridão, perpetua chamma;
Incompativeis producções do engano,
Do sempiterno horror terrivel quadro
(Só terrivel aos olhos da ignorancia)
Não, não me assombram tuas negras côres:
Dos homens o pincel e a mão conheço.

Trema de ouvir sacrilego ameaço
Quem de um Deos, quando quer, faz um tyranno.
Trema a superstição; lagrimas, preces,
Votos, suspiros, arquejando espalhe;
Cosa as faces co'a terra, os peitos fira:
Vergonhosa piedade, inutil venia.
Espere ás plantas do impostor sagrado,
Q'ora os infernos abre, ora os ferrolha;
Que as leis e propensões da natureza
Eternas, immutaveis, necessarias,
Chama espantosos, voluntarios crimes;
Que as ávidas paixões, que em si fomenta,
Aborrece nos mais, nos mais fulmina;
Que molesto jejum, roaz cilicio
Com despotica voz á carne arbítra;
E nos ares traçando a futil benção,
Vai do gran'tribunal desenfadar-se
Em sordido prazer, venaes delicias,
Escandalo de amor, que dá, não vende.

Ó Deus! não oppressor, não vingativo,
Não vibrando c'o a dextra o raio ardente
Contra o suave instincto que nos déste;
Não carrancudo, rispido arrojando
Sobre os mortaes a rispida sentença;
A punição cruel, que excede o crime,
Até na opinião do cego escravo,
Que te ama, que te incensa, e crê que és duro:
Monstros de vis paixões, damnados peitos,
Pungidos pelo sofrego interesse,
Alto, impassivel numen, te attribuem
A colera, a vingança, os vicios todos;

Cortesia de manybooks
Negros enxames, que lhe fervem n'alma.
Quer sanhudo ministro dos altares
Dourar o horror de barbaras cruezas;
Cobrir de véo compacto e venerando,
Atroz satisfação d'antiguos odios,
Que a mira poem no estrago da innocencia:
Ou quer manter asperrimo dominio,
Que os vaivens da razão franqueia e nutre.

Eil-o em sancto furor todo abrasado,
Hirto o cabello, os olhos côr de fogo,
A maldição na bôcca, o fel na espuma;
Eil-o cheio de um Deus tam mau como elle;
Eil-o citando os horridos exemplos,
Em que aterrada observa a phantasia
Um Deus o algoz, a victima o seu povo.
No sobr'olho o pavor, nas mãos a morte,
Involto em nuvens, em trovões, em raios,
D'Israel o tyranno omnipotente
Lá brama do Sinai, lá treme a terra.

O torvo executor dos seus decretos,
Hypocrita feroz, Moysés astuto
Ouve o terrivel Deus, que assim troveja:
"Vai, ministro fiel dos meus furores,
Corre, vôa a vingar-me, e seja a raiva
D'esfaimados leões menor que a tua.
Meu poder, minhas forças te confio;
Minha tocha invisivel te precede;
Dos impios, dos ingratos, que me offendem
Na rebelde cerviz o ferro ensopa.
Extermina, destroe, reduz a cinzas
Dam a frageis metaes, a deuses surdos.
Sepulta as minhas victimas no inferno;
E treme se a vingança me retardas."
Não lh'a retarda o rabido propheta.

In Manuel Maria Barbosa du Bocage, A Pavorosa Illusão, 2007, Código ISSO-8859-1, Project Gutenberg, Londres 1837, Produção de Tiago Tejo.

Continua
Cortesia de Produção Tiago Tejo/JDACT