quarta-feira, 31 de agosto de 2011

César de Frias. A Afronta António Nobre. Parte I. «Tarefa agradável e consoladora? Ou, antes, safara de gozo e mortificante? Uma e outra coisa, simultaneamente, com a dupla face, risonha e carrancuda, que todos os aspectos do mundo apresentam a olhos mortais. Se agradabilidade e consolo me ungiram a alma enquanto nela, esquecido do seu motivo nodal…»


Cortesia de livrariacentral

«Saibam quantos estas laudas virem que eu não quis fazer com elas uma obra de estrondo, que me pusesse repentinamente em foco, dado que o sr. Albino Forjaz de Sampaio já alcançou foros de consagrado e o autor é praça recente na milícia das letras. Demais, é óbvio que, nestas circunstâncias, o que eu teria a fazer, no interesse do meu futuro literário, em vez de hostilizar aquele sr., que pontifica para aí em coisas de pseudo-crítica e anda na roda dos imortais num tu cá, tu lá familiar, era dirigir-lhe vários e curvadíssimos salamaleques, no intento de lhe captar as simpatias, para quando saísse a lume ter sempre sua eminência a benzer-me magnanimamente com o seu hissope. Digo-o de começo para murchar bastardas insinuações dos punitivos vesgos, seus acólitos e panegiristas.
Não amo a literatura petardo. Não. Pelo contrário. Tendo as faculdades gustativas, não sei se por excessivo requinte ou por embotamento mórbido, nada afeitas ao sabor de iguarias condimentadas de escândalo, pesa-me bastante sentir que, de facto e contra a minha vontade, algum cheiro a escândalo daqui tresanda, roçando e açulando o olfacto e o apetite do público ledo gulosamente ávido de escritos em que tal excêntrico tempero seja certo e bravo. E muito hesitei mesmo antes de acometer esta faina, cuja índole, pela sua tonalidade crítica, fica destoando no plano de trabalhos, que, obedecendo a um forte e actual pendor do meu espírito, eu estabelecera para o decurso do ciclo inicial da minha vida escritural, plano quase de todo em todo entretecido apenas de obras de ficção artística. A emergência, pois, que me atirou para a tarefa presente constituiu para mim, primeiro do que para ninguém, a maior das surpresas.


Cortesia de emicles e rascunhosemvida

Tarefa agradável e consoladora? Ou, antes, safara de gozo e mortificante?
Uma e outra coisa, simultaneamente, com a dupla face, risonha e carrancuda, que todos os aspectos do mundo apresentam a olhos mortais. Se agradabilidade e consolo me ungiram a alma enquanto nela, esquecido do seu motivo nodal, o da réplica ao desajeitado comentador do Poeta, falei de António Nobre, esse alto e diligentíssimo astro do lirismo português dos últimos tempos, a que devoto a mais enraizada e velha admiração, velha da velhice capaz de caber nuns vinte e tantos anos, tédio e mágoa me toldaram breve as doces emoções hauridas naquela primeira parte da minha faina, ao lembrar-me de que a executava somente como alicerce duma outra mais áspera e para a qual, já o disse, não só me escasseia propensão, como até se levanta dentro de mim invencível repulsa:
  • A de impugnar quem cometeu o desacato contra a memória do infeliz Poeta, não pela pessoa atacada, que isso nada me importa, mas apenas porque um ataque não se leva a cabo sem ferimentos e sem estridor, nem se compadece do melindre dos espíritos contemplativos e tolerantes, que só a custo consentem em amarrotar a túnica branca da serenidade que os veste sob a chispante e pesada cota de armas, forçosa de envergar para entrar em combate, sempre febril e sem tréguas, bastas vezes injusto e sem nobreza.
Mas o sr. Albino Forjaz de Sampaio assim o quis, publicando o seu último inferior e revoltante livro, e assim o quiseram também os meus irmãos mais velhos nas letras, que egoistamente se quedaram, silenciosos e neutrais, perante a afronta que ele comporta, não vindo, arrancar a carcaça infantil e delicada do Poeta àquelas mãos profanadoras, já reincidentes e velhuscas no crime de violar túmulos de mortos ilustres. E ficar-me-á sempre a mágoa de que outras penas, mais autorizadas, mais idosas e mais hábeis do que a minha, humilde entre as humildes, outras penas, dizia, como por exemplo, as de Justino de Montalvão, António Patrício, Antero de Figueiredo e Alberto de Oliveira, quatro Mestres da prosa portuguesa contemporânea e, para mais, quatro ferventes admiradores do Poeta do «Só», ou por anquilosado desdém pelo seu detractor ou por simples desconhecimento do desacato, não tivessem tido o arranco de indignação esperado, para morderem, sulcarem, vaticinarem no papel, no cometimento da empresa justiceira a que eu me arrojei, mas só quando vi que um silêncio demasiadamente longo, e possivelmente suspeito de cumplicidade, envolvia o delito, como se nada houvesse a objectar ao ignominioso «veridictum» e só depois de ter averiguado que ninguém mais trazia entre mãos obra similar, que, a publicar-se, me libertaria do encargo que penosamente ia tomar sobre os ombros.

Casa de António Nobre, Av. do Brasil no Porto
Cortesia de wikipedia 

Não alimento a ingenuidade de supor que em todos os espíritos esta defesa de António Nobre vá suscitar unânime e intenso entusiasmo e trazer-me a força da sua solidariedade. Demais sei que bastantes miopemente o consideram um Poeta de ordem menor, olhando mais para o continente pequeno da sua curta obra, curta como a sua vida, do que para o âmago rico de potência lírica do seu conteúdo.
Eles terão sorrido, quem sabe se com prazer?, da heresia do sr. Forjaz, como sorrirão amanhã da minha réplica, achando que exagero e que o assunto não merece tanta importância e tanto alarme. Pois até para esses eu julgo que este caso não deve ser alvo de tão gelada apatia.
O que o sr. Forjaz fez hoje com «Anto», fá-lo-á amanhã, como já prometeu claramente, e usando decerto de igual, se não maior, violência iconoclasta, com outras individualidades, que mais alto e florido altar disfrutem no culto da gente desdenhadora do géniode Nobre. Sobre a pedra de alicerce desta defesa restrita e actual poderá ser erguido o arcaboiço largo do edifício da generalidade, em que tenham asilo outros casos que a todos importam.
Bem sabem: ontem, mal tinham entrado na Morte os cadáveres, ainda quentes, de Silva Pinto, Ramalho, Bulhão Pato, correu logo, numa fúria irreverente, a cuspir-lhe sem cima. Agora, em nova sortida, sacou do sepulcrosito de António Nobre e revolveu-lhe as cinzas brancas com os estos raivosos que a mediocridade costuma ranger à vista da grandeza. E, enquanto bolsa insultos contra o Poeta do «Só», que não pode ter culpa de que o Destino lhe tivesse dado, e para seu mal, o que recusou ao desajeitado crítico, declara não ficar por ali. Voltará amanhã a quebrar as lousas das campas de Camilo, de Fialho, de Eça, de Cesário Verde, de José Duro, e de muitos mais, no propósito evidente de apenumbrar, enferrujar, amachucar a auréola duns, e a outros na intenção esconsa e hipócrita, manhosa e ridícula, de lhes pôr os méritos em melhor destaque, de os sacudir do pó do esquecimento, em que a sua alma, boa e piedosa da última hora, não consente que vão cair. Como se os talentos raiados de génio de Camilo, do Fialho ou do Eça, necessitassem para circular no nosso entusiasmo admirativo da apresentação gaguejada dum sr. Albino Forjaz de Sampaio!... Armou o homem em porteiro cicerone do Panteon, salte a nomeação no «Diário do Governo» e dêem-lhe a farda agaloada!». In César de Frias, A Afronta a António Nobre, Livraria Central, Editora, Lisboa, PQ9261N6Z67, Library University of Toronto 15 de Setembro de 1967.

(Continua)
Cortesia de Livraria Central Editores/JDACT