terça-feira, 5 de julho de 2011

Sónia Louro: A Vida Secreta de D. Sebastião. «De frente para as duas mulheres, D. Maria reconheceu de imediato qual delas seria a sua mãe, não porque lhe guardasse qualquer recordação dos vinte e três meses que vivera com ela, mas pelos retratos dela no Paço. A medo, D. Leonor decidiu quebrar o gelo, arriscando um abraço, mas os braços que a envolveram eram o próprio gelo»

 Cortesia de vouestaraquiaroucaonline

«Durante trinta e quatro anos, D. João III segurou com mão de ferro o braço de D. Maria para que esta não visitasse a mãe. Os seus motivos eram sobejamente conhecidos por D. Catarina e até aceites, mas o marido morrera e a influência do seu irmão era maior. Agora tornara-se apenas num assunto de irmãos: o pedido de D. carlos V, que D. Catarina não se iludia tratar-se de uma ordem para, por sua vez, satisfazer o desejo da sua irmã D. Leonor, e havia ainda a rainha viúva da Hungria, D. Maria de Áustria, sua outra irmã, cujas simpatias recaíam para que a sobrinha visitasse a mãe.
Era ela sozinha contra o clã da Casa de Áustria, e agora não tinha o marido com o qual se desculpar junto dos irmãos. É dificil manter uma posição quando todos os oponentes são os irmãos; dá a sensação que se é o traidor da família. Por outro lado, a quem é que se deve mais lealdade, à família de onde se vem ou àquela que se faz? Ela perdera nove filhos. Será que os irmãos apenas conseguiam perceber os interesses de D. Leonor? Era óbvio que D. Leonor era culpada de tal fatalidade, pelo menos no coração de D. Catarina. Foi nessa altura que ela sentiu, pela primeira vez e genuinamente, a falta do marido, não para lidar com os assuntos de Estado, mas para poder fazer frente aos seus irmãos. Se havia algo na vida pelo qual os corações de D. Catarina e D. João III batiam em uníssono, era no desejo de nunca deixar D. Maria de Portugal reencontrar-se com a mãe. D. João III fazia-lhe falta; ele impediria esse reencontro sem qualquer pejo de laços sanguíneos que o contivesse, e D. Catarina aproveitaria a sombra do marido para se escusar com a família. O rei fazia falta à rainha porque ela percebeu que o reencontro entre mãe e filha seria inevitável. D. Catarina não tinha meios de impedi-lo, mesmo com a pouca vontade da própria sobrinha.

Cortesia de saidadeemergencia

D. Maria de Portugal crescera orfão de pai e mãe, um porque morrera de facto, a outra porque a fizera sentir-se assim, e com um débil amor fraternal por parte dos filhos de D. Manuel. No entanto, ela não se iludia. Sabia que não podia esperar muito mais da sua família de Castela. Se a queriam de facto porque mandara o imperador D. Carlos cancelar as adiantadas negociações para o matrimónio com o seu filho D. Filipe?
O casamento de D. Maria com o herdeiro castelhano tê-la-ia tirado de imediato de Portugal, catapultando-a sem mais apelos nem agravos para os braços da sua família espanhola. No entanto, o imperador D. Carlos preferira a ascendência da rainha Maria Tudor de Inglaterra, para noiva do filho. Por isso, que não lhe viessem agora com histórias de encantar sobre o amor que para lá do reino lhe devotavam. Amor por amor, ficaria em Portugal, onde pelo menos pelos seus súbditos era genuinamente amada. Há trinta e quatro anos, quando a mãe se preparava para partir, a cidade de Lisboa opôs-se a que D. Leonor levasse a infanta de Portugal para Castela. Agora andava de novo alvoraçada com a perspectiva de que isso acontecesse:
  • Pois se a mãe a quer ver e a infanta assim o desejar, que se encontrem numa qualquer povoação da raia!
  • Mas que volte logo para o reino, que nada de bom lhe poderá advir de passar a Castela.
Era este género de frases que se ouviam nas tabernas de Lisboa, onde cada súbdito julgava poder controlar por sua vontade as decisões dos seus soberanos... De facto, assim acabou por ser! D. Maria partiu para se encontrar com a mãe, mas numa povoação da fronteira e, mesmo antes disso, prestou um juramento solene de que regressaria.

Cortesia de saídadeemergencia

A infanta de Portugal, como tantas vezes a tinham chamado nesta última semana, provavelmente para não a fazer esquecer a sua verdadeira origem, partiu em Dezembro para Badajoz, acompanhada por uma extensa comitiva de fidalgos e damas. Na realidade, não lhe interessava assim tanto conhecer a mãe. Parecia ser hábito naquela família as mães abandonarem os seus filhos, pois D. Joana, sobrinha da sua mãe, também abandonara o seu filho, D. Sebastião.
Á entrada de Badajoz, uma ostensiva carruagem real esperava no caminho pela passagem da comitiva portuguesa. D. Leonor acompanhada pela sua irmã D. Maria de Áustria não contendo mais a expectativa da espera, decidira ir ter com os portugueses. A infanta portuguesa percebeu que não poderia adiar por mais tempo aquele reencontro, assim como as intençoes da mãe. Apesar dos pedidos dos fidalgos e das damas, D. Maria desceu da sua carruagem, caminhou e entrou sozinha na da máe, fechando de imediato a porta atrás de si para que o tão ansiado reencontro fosse feito longe de olhares alheios.
As duas mulheres de Áustria olhavam mudas para D. Maria enquanto a carruagem retomava a sua marcha, e aquela devolvia-lhes o olhar. Havia um desconforto entre si. D. Leonor imaginara muitas vezes aquele dia, mas a sua imaginação criara uma filha mais calorosa do que aquela que via sentada na sua frente. Lembrou-se inevitavelmente do dia em que a sua posição era inversa: era ela a filha diante de uma mãe que desconhecia e não via há mais de uma década. Tinha na altura dezanove anos e também não fora calorosa para a mãe. Do que se queixava ela  então? Se o tempo tem memória e os nossos gestos se pagam, estes estavam a saldar-se agora.
De frente para as duas mulheres, D. Maria reconheceu de imediato qual delas seria a sua mãe, não porque lhe guardasse qualquer recordação dos vinte e três meses que vivera com ela, mas pelos retratos dela no Paço. A medo, D. Leonor decidiu quebrar o gelo, arriscando um abraço, mas os braços que a envolveram eram o próprio gelo». In Sónia Louro, A Vida Secreta de Dom Sebastião, Saída de Emergência 2008, ISBN 978-989-637-065-7.

Cortesia de Saída de Emergência/JDACT