terça-feira, 7 de junho de 2011

Páginas Desconhecidas: A Poesia revolucionária e A Morte de D. João. «O "humour", que dava além uma ideia poética, traduz aqui um pensamento filosófico; não é uma blasfémia, é uma rigorosa verdade. O Diabo e o padre Eterno são a tese e a antítese de uma proposição teológica resolvida pela filosofia, que é a do poema»

Cortesia de wikipedia

«Os bordéis, as pústulas, a miséria ascorosa e as bacanais impúdicas, são apenas figuras de retórica, chavões de escola, como o foram para os românticos os crimes a sério, o luar, a meia noite, o espectro, o plebeu nobilitado, a cortesã democrata, e a eterna e parvoíssima figura da meretriz santa, de Madalena.
Quanto a mim, a tecnologia baudelariana é o defeito artístico da «Morte de D. João». Azorragar os vícios, ou blasfemando ou rindo, é sempre bom; mas é necessário que se trate dos vícios, que se vejam os costumes, e não, em vez deles, uma sociedade convencional de meretrizes e de pais que põem as filhas em leilão à janela, convencional e retórica, porque afinal o nosso mundo, a nossa sociedade, não são assim.
Diz-nos o poeta que:

A arte é hoje uma infiel Ninon;
Magra, elegante, anémica, fransina,
Triste beleza delicada e fina,
Doidamente vestida à Benoiton.

Mas qual arte? Não é essa a da musa épica dos monumentais alexandrinos do prólogo. Não é; é a arte que vem de Paris em volumes da casa Levy, e que afinal, em Paris mesmo, é apenas a pimenta venenosa que aguça o paladar embotado de «D. João crevé» e das Impérias.

Cortesia de wikipedia

Será isto condenar o humorismo em nome da «moral em acção», a coisa mais imoral, por ser a mais imbecil que existe? Por forma alguma. O humorismo é a forma necessária e adequada do lirismo contemporâneo; distingamos, porém, entre o género e a retórica de um dos exemplares desse género, que é o mais conhecido em Portugal. «Humour» e do melhor quilate, traços de Heine ou de Swinburne peninsular, se encontram a cada página na Morte de D. João: razão de mais para que o artista ponha de parte os lugares comuns de um suposto realismo; deixe isso a quem não dispõe doutros materiais.
É por uma noite escura:

..ao longe dir-se-ia
Que os coros divinais depois de alguma orgia
Partiram, cambaleando, a abóbada do espaço,
Caindo sobre a terra em fúlgido estilhaço.

Eis um exemplo de verdadeiro «humourismo», e uma ideia poética de incontestável valor. Outra:

O POETA
Satanaz, meu amigo!
--------------------
Mas'inda agora vejo, andas de luto...

O DIABO
Morreu-me meu irmão, o Padre Eterno.

O «humour», que dava além uma ideia poética, traduz aqui um pensamento filosófico; não é uma blasfémia, é uma rigorosa verdade. O Diabo e o padre Eterno são a tese e a antítese de uma proposição teológica resolvida pela filosofia, que é a do poema. O Bem contrapõe-se ao Mal, um e a condição necessária do outro; não podem existir isolados; a morte de qualquer deles implica a do companheiro.

Cortesia de wikipedia

Se o Bem e o Mal se confundem na ideia do Absoluto, se o Diabo e o Padre Eterno se resolvem na ideia de Deus, que é um aspecto do Absoluto, a expressão do poeta e uma verdade teológica afirmada humoristicamente.
Não acabaria, se pretendesse esgotar os exemplos. Aqui é uma orquestra desvairada, brutal, «americana»; além um olhar cansado, «metafísico»; noutra parte dá-se com uma velha rua misérável, triste, caliginosa, impenetrável «como um dogma cristão». O exagero das notas repugnantes e lúgubres empasta o quadro. É com efeito «ultra-charogne»; mas de que vale isso para o poema? Essa acumulação de pústulas nas pernas de D. João, esse desvario de coisas nojentas, que provam, mais do que o abuso do género, de si já falso?

Ai, que frio! que horror!
Se eu ainda tivesse consciência,
Ai que frio!... comprava um cobertor.

Eis o que vale mais do que todos os termos tomados de empréstimo à patologia:

Ó Deus forte, ó Deus justo, ó Deus clemente,
Para que eu seja um verdadeiro crente,
--------------------------------------
Digna-te:, ó Deus, lançar n'estes meus hombros
Um capote hespanhol!

D. João afinal morre. Que tens?, pergunta-lhe Impéria. Não é remorso... é fome».
In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, A Poesia Revolucionária e a Morte de D. João, Seara Nova 1948, Lisboa.

Cortesia de Seara Nova/JDACT