quarta-feira, 8 de junho de 2011

José Mattoso. Naquele Tempo: Ensaios de História Medieval. «Ora, como se sabe, a barregania foi efectivamente praticada, e sem censura social, mesmo entre os nobres, pelo menos até meados ou ao fim do século XIII. É evidente que ela favorece uma prática amorosa do género da que é evocada nas cantigas de amigo»

A longa persitência da barregania
José Mattoso
Cortesia de revistafacesdeeva

A moral clerical e a sua evolução.
Limites da permissividade.
«Só isso permite compreender a evolução da barregania, que implica necessariamente, sobretudo em épocas mais recuadas, a constituição de casais instáveis, a conivência da mulher e a ausência de controle por parte da família donde ela procede. Ora, como se sabe, a barregania foi efectivamente praticada, e sem censura social, mesmo entre os nobres, pelo menos até meados ou ao fim do século XIII. É evidente que ela favorece uma prática amorosa do género da que é evocada nas cantigas de amigo. Ainda que as situações sejam imaginárias e os trovadores e jograis pretendessem sobretudo explorar literariamente a expressão do desejo erótico, pode-se admitir que essas situações não fossem meramente fantasiosas para o grupo de que falamos.


Cortesia de daliedaqui e mafiosorigatti

O facto de evocarem situações próximas da realidade, embora peculiares de um grupo restrito, conferia-lhe um impacte muito mais intenso. A tentação de passar do desejo à realidade seria maior. O elevado número de bastardos registados nos livros de linhagens mostra que muitos nobres caíram nela: não só os que pertenciam a tal grupo, mas também os que o marginalizavam, que promoviam a obediência às normas clericais, que aceitavam as regras da legitimidade ditadas pelos tribunais régios e que faziam da defesa de tais normas um indício de superioridade social. Para eles a infracção podia, então, tornar-se um jogo, um divertimento. Como é evidente só podiam permiti-lo aos homens; as damas eram dele excluídas. Estas só podiam viver a infracção sob a forma de desejo; aqueles podiam buscar as suas aventuras amorosas, mas com mulheres de categoria inferior; bastardas de nobres ou clérigos, filhas segundas impedidas de casar, quer as que ficavam em suas casas em situação de inferioridade, quer algumas das que eram obrigadas a recolher-se ao convento, soldadeiras que frequentavam as cortes senhoriais e régias, prostitutas, talvez mesmo camponesas e pastoras, filhas de caseiros que habitavam nos domínios dependentes.

Cortesia de elninga

Nas uniões desiguais, porém, o carácter sexual prevalecia nitidamente sobre o aspecto sentimental; os jograis e trovadores censuravam severamente as veleidades de transformar estes jogos em «serviço» de amor. Como é evidente, numa sociedade que prezava tanto as diferenças sociais, e que registava cuidadosamente os comportamentos que permitiam classificar os indivíduos numa escala hierárquica extremamente complexa, tornava-se também motivo de prestígio (ou de desprestígio) a habilidade (ou a falta dela) com que os machos jogavam tais jogos, demonstrada na escolha do par, na frequência e variedade das ligações, na subtil forma da as ocultar ou ostentar». In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT