sábado, 21 de maio de 2011

Páginas Desconhecidas: A Poesia revolucionária e A Morte de D. João. «Conceber o movimento da vida real e positiva como «aproximação para Deus», é compreender toda a profundidade verdadeira do pensamento moderno, para o qual deixou há muito de existir o velho Deus exterior e inimigo, perante quem os homens eram títeres movidos pelo cordel...»

Cortesia de ptof2000

In Memoriam a ATC
«Ora a musa dos poetas-líricos nunca disse estas coisas, não as sabe, nem quer saber, e duvido que falasse em tão bons versos.
Seja como for:
... a branca aparição, ligeira como o vento,
Perdeu-se pelo azul do claro firmamento.

A musa não pôde responder, foi batida. A brisa, as águas, os ribeiros, e todas as flores do prado, desde a cecém até à bonina, e todos os lábios de todas as virgens, a geografia e a botânica e a zoologia dos lamartinianos não conquistaram o moço, o forte, o vivo poeta moderno, das modernas paixões, dos valentes e profundos pensamentos, cuja musa é outra:

..., a grande musa austera
Que habita junto a Deus na eterna primavera
Dos astros e dos sóis.


Cortesia de letrassuspeitas

É ela, que lhe aparece, e que o como à sibila, em religioso silêncio, quem lhe manda que defina a lei suprema:

Que rege o movimento e as formas da matéria;
…………………………………..................
Os glóbulos do sangue e os glóbulos dos mundos,
As correntes do mar e a luta das paixões,
O verme e a tempestade, os homens e os vulcões.
……………………………………………...
Definir essa lei, eis o imortal problema.
Trabalha para isso a natureza inteira:
A consciência, o ferro, a bússola, a caldeira,
'O magnetismo, a luz, as prensas, o martelo,
A voz da intuição e a língua do escalpelo,
A crítica e a fé, os dogmas e os metais.
E é deste turbilhão de ciências colossais,
Dos livros, do vapor, das forjas, dos museus,
Desta aproximação imensa para Deus
Que hão-de surgir em breve, atléticas, radiantes,
Musas para inspirar teorbas de gigantes.

Eis ai a confissão do poeta, eis o alicerce de granito deste livro, que há-de viver, como vivem as coisas verdadeiras e santas.
Conceber o movimento da vida real e positiva como «aproximação para Deus», é compreender toda a profundidade verdadeira do pensamento moderno, para o qual deixou há muito de existir o velho Deus exterior e inimigo, perante quem os homens eram títeres movidos pelo cordel, cheio de nós, da sua divina graça, e cuja adoração consistia no sacrifício de tudo quanto há santo na alma, a começar pela dignidade humana, pisada a pés pelo dogma do passado; do pensamento moderno, para quem a contemplação do Universo moral matou de vez as provectas doutrinas do empirismo -sensualista, e o dualismo primitivo da matéria e do espírito, do bem e do mal, de Deus e do Diabo.

Cortesia de ephemerajpp

Mas não é somente a corda épica, a que a musa lhe manda ferir. Pelo contrário. A «Morte de D, João», animada de princípio a fim por um pensamento épico, é um poema humorístico, vasado, e vasado de mais, nos moldes de Espronceda, de Heine, de Baudelaire e de Swinburne. O baudelarianismo na poesia é um vício de gosto que ataca hoje em dia os melhores. O requinte de sensibilidade dolente, a que a elevação da vida psicológica moderna conduz os espíritos delicados, o requinte de sibaritismo, a que as contradições morais e económicas da nossa época têm levado os sentidos, dão as mãos para produzirem a tendência, geral de mais para ser artificial, de uma das feces da poesia contemporânea». In J. Oliveira Martins, Páginas Desconhecidas, A Poesia Revolucionária e a Morte de D. João, Seara Nova 1948, Lisboa.

Cortesia de Seara Nova/JDACT