terça-feira, 10 de maio de 2011

José Mattoso. Naquele Tempo: Ensaios de História Medieval. «Esta interpretação Parece confirmar-se pelo carácter global das «cantigas de escárnio» e pelo de muitas das de «maldizer» que tratam de maneira crua esses mesmos costumes. Assim, o esforço no sentido de descobrir, por detrás dos diversos géneros literários poéticos, vestígios de normas sexuais diferentes das da Igreja...»

Cortesia de sandrawaihrichtatit

Significado erótico dos géneros poéticos
«Mesmo assim, não deixa de ser significativo que o imaginário da «poesia de amor» explore de preferência a situação de infracção, cultivando o desejo do adultério e ao mesmo tempo apresentando a quebra do segredo amoroso como o pior dos crimes do amante, e que o imaginário da «cantiga de amigo» ignore por completo os preceitos da moral oficial, que proíbe as relações pré e extraconjugais. Mais adiante veremos que as primeiras reflectem, decerto, os preceitos de uma sociedade dominada pela exclusão matrimonial de uma grande maioria dos filhos segundos; nelas o adultério não é apresentado claramente:
  • ao incitar ao amor oculto, escondido até, porventura, da própria amada, as cantigas acentuam a proibição de passar da fantasia à realidade;
  • os jovens nobres impedidos de casar podiam dar largas à sua imaginação sonhando amar, até, a mulher do seu senhor ou sonhando morrer de amor por ela; mas todo o adultério descoberto seria severamente punido.
As «cantigas de amigo», porém, podem representar alguma coisa mais do que situações puramente ficcionais ou mais do que um desejo ao mesmo tempo extremo e desligado da realidade. Podem reflectir certos costumes de um grupo humano regido por preceitos menos repressivos, constituído pelos excluídos do casamento solene e estável, mas nem por isso necessariamente impedidos da vida sexual, como seriam os filhos segundos, as raparigas sem dote, os bastardos e bastardas, os cavaleiros sem terra, os jograis, os escudeiros, as soldadeiras, as barregãs...


Cortesia de enciclopedia
Entre estes, seria grande o cuidado das mães em controlarem as primeiras experiências amorosas das filhas, mas também seria admissível a sua efectiva condescendência. As raparigas casadoiras podiam sonhar com encontros amorosos durante as romarias, não apenas como formas irrealizáveis de satisfazer o desejo, mas como eventualidades bem concretas. As cantigas de amigo sugerem, e os costumes populares vindos até à nossa época confirmam, que estas experiências não se limitavam à dança e à fala com o amigo.

Sendo assim, as cantigas de amor reflectiriam uma moral dissidente da Igreja no domínio do imaginário, mas reforçá-la-iam ao nível da realidade social. As de amigo, representando também situações ficcionais, podem, pelo contrário, testemunhar alguns costumes efectivos do referido grupo, e, nesse medida, exprimirem, além de um certo imaginário erótico, uma prática sexual diferente da proposta pela Igreja. Esta interpretação Parece confirmar-se pelo carácter global das «cantigas de escárnio» e pelo de muitas das de «maldizer» que tratam de maneira crua esses mesmos costumes. As normas que os regulavam aproximavam-se, talvez, pelo menos em alguns pontos, daquilo a que mais acima chamámos moral «popular». Adiante veremos outros aspectos desta questão.

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Assim, o esforço no sentido de descobrir, por detrás dos diversos géneros literários poéticos, vestígios de normas sexuais diferentes das da Igreja e das que foram aceites e promovidas pelo poder régio a partir do século XIII, leva igualmente a admitir que os produtores e destinatários preferenciais desses mesmos géneros poderiam, por sua vez, ser mais ou menos permeáveis a tais normas:
  • os jograis e soldadeiras formariam o grupo mais insensível à moral clerical.
Mas o facto de as suas composições serem tão apreciadas pelos nobres, e sobretudo pelos cavaleiros, mostra que os seus costumes exerciam um efectivo fascínio sobre muitos membros das cortes régias e senhoriais e atraía sequazes de outras origens. Basta evocar o mundo dos bastardos e das barregãs dos nobres, dos jovens proibidos de casar e dos cavaleiros sem terra, para se perceber que a classe nobre, apesar de finalmente convertida à moral clerical, para ostentar a sua superioridade social e por ter de se sujeitar aos preceitos de legitimidade difundidos pela corte régia, sofre a constante tentação de os imitar. Para ela, são o espectáculo vivo que lhe alimenta o imaginário erótico». In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios de História Medieval, Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2009, ISBN 978-989-644-052-7.

Cortesia de Temas e Debates/JDACT