quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

A Marquesa de Alorna: Parte I. «Algumas notícias autênticas para a história da muito e eminente escritora, que os poetas seus conterrâneos denominaram ALCIPE»

Cortesia de imprensa de manuel lucas torres, lisboa 1916 

«Coleccionando elementos para a história da Marquesa d'Alorna, a afamada e douta Alcipe, entendemos dever desde já indicar a localidade onde nasceu. Os Marqueses d'Alorna, Condes de Assumar, seus pais, viviam na época do seu nascimento em parte do grande palácio, que havia no sítio do Limoeiro e que pertencia aos Condes d'Assumar; na parte restante do palácio, que deitava para o largo do Conde d'Assumar, estavam instaladas a Relação e a prisão que lhe ficava anexa.

O nobre senhor Conde da Figueira. D. José de Caslello Branco, fez-nos o grande obséquio de nos informar que a menina D. Leonor d’Almeida Portugal, a futura quarta Marquesa d’Alorna, tinha nascido no referido palácio dos Condes d'Assumar, o que lhe fora por vezes confirmado por seu neto o Marquês de Fronteira, D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto.
Por ocasião deste nascimento deu-se a seguinte ocorrência, que é tradicional na família Mascarenhas-Alorna : «Um dos presos que estava na prisão anexa e condenado a pena ultima, tendo sabido do fausto acontecimento do nascimento da menina, pôs-se a gritar: «Senhora D. Leonor pequenina, peça o perdão deste desgraçado, que está condenado à morte». A crónica da família afirma que o condenado foi perdoado.

Cortesia de imprensa de manuel lucas torres, lisboa 1916

Quando foi injustamente preso o Marquês d'Alorna, pai de Alcipe, já não residia no palácio do Limoeiro mas sim, no seu palácio a Jesus.
No tomo primeiro da Introdução das Obras Poéticas da senhora Marquesa d'Alorna, considera-se em três épocas principais a vida da notabilíssima escritora:
  • Menina e donzela, na vida de seu pai o Marquês D. João d'Almeida,
  • Condessa d'Ocynhausen, na vida do Conde, seu marido, e viúva até à morte de seu irmão,
  • Marquesa d’Alorna, depois da morte de seu irmão e dos filhos dele.
A futura Marquesa d'Alorna começou muito cedo a sentir os golpes do infortúnio, pois na idade de oito anos, foi com sua mãe e sua irmã D. Maria d'Almeida, depois Condessa da Ribeira, presa do Estado, no convento de Chelas, para onde entraram a 14 de Dezembro de 1758; enquanto seu irmão D. Pedro, de três para quatro anos de idade, ficava, como que abandonado à compaixão dos seus familiares, e seu pai, o Marquês D. João d'Almeida Portugal, próximo a partir para Paris como Embaixador à corte de Luiz XV, foi lançado no horrível cárcere da Junqueira, acusado falsamente de ter conhecimento do atentado da noite de 3 de Setembro de 1758. No retiro de Chelas. durante mais de dezoito anos, ficou esta menina sem mestres, e sem qualquer auxílio para a sua educação, a não ser a doutrina e ternura de sua mãe, e mais tarde as máximas e conselhos de seu pai, que lhe eram comunicados com grave risco para ele e para sua mulher e filhas. A sua educação muito deveu porém aos livros escolhidos, que lhe foram ministrados pelos amigos de sua família, que a tornaram insigne no conhecimento das línguas e nas letras, pela sã filosofia da música e da poesia.
Era especialmente encarregado da reclusão da Marquesa d'Alorna e de suas filhas, o Arcebispo de Lacedemonia, que a tornava desagradável por todos os meios. Este Arcebispo era criatura do Marquês de Pombal.

Cortesia de imprensa de manuel lucas torres, lisboa 1916

D. Leonor d'Almeida conhecia a fundo umas poucas de línguas, tinha vasta instrução científica, pintava admiravelmente, e possuía ao mesmo tempo as prendas do seu sexo.
Nas salas citava-se a sua intrepidez e o seu espírito, e dizia-se, em voz baixa, que estes dotes eram notavelmente afirmados na sua presumida resposta ao Arcebispo de Lacedemonia, que lhe ordenara se vestisse de cor honesta e cortasse o cabelo, por ter cometido o «grande crime» de introduzir seu irmão junto de sua mãe, fazendo tomar a este o lugar de aguadeiro.
Segundo a mesma versão, não tendo D. Leonor D’Almeida obedecido a estas determinações, o Arcebispo ameaçou-a de fazer queixa ao Marquês de Pombal, ao que D. Leonor respondeu:
  • «Le coeur d’Eléonore est trop noble et trop franc. Pour craindre ou respecter le bourreau de son sang».
O Arcebispo não gostou da resposta, mas fingindo atender à mocidade da sua interlocutora, contentou-se em replicar que «visto não poder nunca sair daquela clausura, tanto importava que andasse vestida de preto, como de encarnado».
A resposta atribuída a D. Leonor d' Almeida, apesar de vir escrita por suas filhas na Introducção das Obras Poéticas de Alcipe, não é porém exacta, como o prova uma carta a seu pai, escrita pelo próprio punho da insigne escritora e que em seguida transcrevo». In Marquês D'Ávila e de Bolama, Lisboa 1916, Imprensa de Manuel Lucas Torres, Rua Diário de Notícias 87-93.

Cortesia de imprensa de manuel lucas torres, lisboa 1916

«Meu querido Pai e Snr. do meu coração»
Uma história verdadeiramente cómica deve olhar-se comicamente e receber V. Exa com o conhecimento dela aquelas pequenas impressões de que só é susceptível um ânimo filosófico, como o de V, Exa. Eu estou tão cansada de escrever que pouco me é possível dizer a V. Exa, mas ao menos será o necessário. Chegou meu irmão a Lisboa bom, galante e estimabilíssimo, e, não obstante as melhoras de minha mãe, o ar frigido e coado das grades meteu medo ao médico, mas não houve remédio se não condescender com os desejos que ela tinha de o ver, e passados três dias de meu irmão estar em Lisboa, este, muito impaciente de ver sua mãe, obteve um tácito consentimento da Prelada e entrou com um barril de água, o que lhe custou, mas deu tudo de barato, jantou connosco, tivemos um dia de folga todos juntos, e saiu meu irmão à noite segundo o costume conventual, o qual admite aqui infinitas pessoas com qualquer pretexto. Minha mãe estava fora da cama muito contente com o filho, e nós igualmente com o irmão; nem por sombras imaginávamos que isto seria prejudicial a coisa nenhuma. Entretando as freiras, furiosas contra nós. deram conta do que se passou aos Prelados com o aspecto mais horroroso que é possível, e no dia seguinte à tarde veio a cozinheira ou aia da Prioresa chamar-me a mim e à mana da parte do Arcebispo de Lacedemonia. A primeira coisa que me lembrou foi responder que não queria lá ir; mas permitiu Deus que minha mãe julgasse o contrário e fomos ambas, eu e a mana. Ao entrar na grade, saiu para fora a Prioresa e apresentaram-se-nos dois homens, um deles valia por um esquadrão, era uma baleia de rebuço em um capote de baeta usado, um daqueles cónegos que pasma à «l’aspect d'une soupe», e sem mais cumprimentos com as pupilas, se sentaram os nossos dois prelados. Este gordo era o Inspector, e o Arcebispo de menor volume, disse : V. Exas podem estar a seu gosto - sentámo-nos. ele escarrou, tossiu, e «se rengorgcant» na cadeira principiou. - Sua Majestade, a quem constou o atentado que ontem cometeu seu irmão de V. Exas violando a clausura, me manda repreender a V. Exas asperamente e é servido ordenar que V. Exas não tornem á grade até segunda ordem: que andem vestidas honestamente e que as suas criadas se reformem nestes oito dias, passados os quais, se o não fizerem, tem a Prelada ordem para serem expulsas. Eu e a mana ouvimos em silêncio modestamente estes quatro versos, e acabada uma grande prelenga que ele fez sobre as imunidades da clausura, respondi eu : Que o nome augusto de Sua Majestade bastava para que pessoas que tinham sido educadas com honra olhassem só com respeito quaisquer ordens, e que eu assegurava a S. Exa que elas seriam executadas com fidelidade e prontidão; porém que o nosso atentado era tão horroroso que, depois de protestarmos a nossa obediente submissão, restava ainda pôr na sua verdadeira luz o pretendido atentado e convertê-lo em uma acção generosa digna da piedade dos nossos legisladores, e além disso conforme às liberdades que eram concedidas a minha mãe. Pintei-lhe com cores bastantemente vivas um filho que despreza o trabalho mais penoso para consolar uma mãe aflita, e satisfazendo com o seu cansaço as apertadas leis da clausura. Disse-lhe que havia uma multidão de casos idênticos, e que só demasias de pesares sem esperanças de alivio davam motivo a que abusassem do nosso estado as nossas acusadoras.




Perguntei-lhe se meu irmão padeceria também alguma coisa. Respondeu-me que não, porque meu irmão era um herói, um assombro nos estudos, e fez do rapaz o elogio mais completo. Agradeci-lhe aquelas expressões, e disse-lhe que se nós tivéssemos a fortuna de aparecer no mundo, eu me lisonjeava de que pareceríamos inocentes como ele, mas que dado o caso de padecer alguém, nós lhe pedíamos que quisesse S. Exa voltar tudo contra nós e poupar minha mãe e meu irmão.
Não me esqueceu nada para mostrar-lhe o peso da sua injustiça, e descrevi o estado de minha mãe, segundo o sentia o meu coração, capaz de abalar uma pedra, por que ainda que minha mãe não tem nada, se uma filha tem arte de comunicar a sua sensibilidade aos outros sempre os faz padecer, e V. Exa verá nas cartas que lhe vão o estado em que a julgam. Peço a V. Exa que delas não infira nada que o aflija, porque eu lhe juro que não há razão para tal. Enfim eu escrevi ao Arcebispo, e tendo escrito ao Conde dos Arcos e a D. João de Faro, por que figurando eu só neste caso e sendo obrigada pelo mesmo Arcebispo a não comunicar nada a minha mãe, enquanto ele trabalhava por nos restabelecer, não foi possível deixar de quebrar umas leis, quebrando-se aquelas que deviam abrigar-nos destas sem razões. A respeito de vestidos, os nossos não foram invejados senão por limpos, e o Arcebispo mesmo se riu das respostasfilosóficas que lhe dei, e da prontidão com que me quis logo vestir pela sua eleição, achando-me muito honrada em El-Rei se dignar dar ordens, numa matéria que eu muitas vezes deixava ao arbítrio do mercador. A reforma das criadas consiste em dois covados de caça postos na cabeça. Considere V. Exa as dificuldades e os casos que fazem rodar um Arcebispo, de Lisboa até aqui. Chamar gente branca para a repreender, e no fim dizer-nos que não necessitávamos de enfeites, porque somos muito bonitas. Ria-se meu querido Pai, e olhe para estas coisas como merecem. Hoje esperamos que tudo se remedeie, porque o Marquês de Pombal disse ontem publicamente, que o caso não valia nada e que as freiras nos acusaram falsamente. Recados ao mano e adeus que absolutamente não posso mais.
De V. Exa
Filha muito amante e obediente
L …

Com a amizade de Paulo Campos/JDACT