terça-feira, 25 de janeiro de 2011

José Mattoso: Naquele Tempo. Ensaios de História Medieval. Parte II. «O erotismo foi também largamente cultivado em Portugal, como se torna evidente na lírica galego-portuguesa. Convém, todavia, não deduzir daí que toda ela se pode considerar como expressão de uma moral sexual diferente da da Igreja»

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Com a devida vénia a José Mattoso e ao Círculo de Leitores, «Naquele Tempo», Temas e Debates, 2009 Fevereiro, ISBN 978-989-644-052-7.

O erotismo
«Recordemos, de passagem, que o erotismo tem por objecto a expressão livre do desejo e implica normalmente uma componente infractora. Os seus destinatários constituem, por isso mesmo, uma minoria capaz de compreender os seus princípios e de ensaiar as suas práticas.
Reveste, portanto, um carácter, por assim dizer, iniciático. A moral oficial dificilmente pode admiti-lo: só pode tolerar a sua prática oculta, em zonas marginais da sociedade, apesar de, em teoria, e no plano, das normas, o condenar. Mesmo quando alguns sectores do clero admitem a tolerância do erotismo no interior do casamento, como tinha proposto a moral estóica, a Igreja guarda sobre isso um prudente silêncio ou promove opiniões tão severamente contrárias ao erotismo conjugal como a de Santo Agostinho e dos seus numerosos seguidores.

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O que prevalece, em doses maciças, é a condenação da carne e a identificação da concupiscência como uma das inevitáveis consequências do pecado original. Os pregadores e a maioria dos escritos sobre tal matéria transpondo para a moral dos leigos o que ao longo dos séculos foi produzido para uso dos monges, em cujo meio tiveram largo sucesso as ideias maniqueístas, fizeram da condenação da (carne) um tema verdadeiramente obsessivo. Seria preciso esperar o século XIX para, em alguns sectores da Igreja, voltarem e. aparecer posições semelhantes às de Plutarco e outros autores do século II, que consideravam o matrimónio como o estado mais propício para a efusão dos aphrodisia (Foucault, 1984, pp.206-216). Consequentemente, perante a moral eclesiástica medieval, o erotismo é sempre um domínio perverso (J. Le Goff, 1992). A sua expressão está, por isso mesmo, mais envolvida em processos metafóricos e simbólicos do que noutras épocas. Nem por isso deixou de ser cultivado amplamente e com toda a complacência (B. Roy, ed., 1977).

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Este facto confirma a existência de pólos de produção de um discurso sobre a sexualidade diferente do da Igreja.
O erotismo foi também largamente cultivado em Portugal, como se torna evidente na lírica galego-portuguesa. Convém, todavia, não deduzir daí que toda ela se pode considerar como expressão de uma moral sexual diferente da da Igreja. Com efeito, o erotismo, enquanto propõe uma prática sexual que tem por norma o prazer, reserva-o para momentos, pessoas e práticas especiais. Não nega necessariamente os preceitos correntes, grosseiros e taxativos da moral oficial; considera-os, no entanto, destinados ao vulgo, ou seja à maioria dos indivíduos, pois a maioria não conhece as subtilezas do prazer requintado; pode, até, admiti-los como norma a respeitar pelos próprios cultores do erotismo, enquanto orientação para o seu comportamento exterior e socialmente visível.

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Como se sabe, atribui-se aos trovadores provençais a descoberta de que se podia tirar prazer de uma exacerbação da tensão entre o desejado e o proibido, sem infracção real do preceito positivo; esta forma de exercício sexual corresponde à exploração dos efeitos eróticos da incitação ao desejo aliada à proibição de o satisfazer (D. de Rougemont, 1939; Jacquart e C. Thomasset, 1985, pp. 132-160). Assim, o desejo será necessariamente infractor da moral oficial; mas a proibição coincide com as suas prescrições positivas. Neste sentido, o erotismo das cantigas, de amor pode não constituir expressão de uma prática sexual dissidente, na medida em que a dissidência permanece na zona do imaginário; embora este se cultive, proíbe-se a passagem à realidade. Por outro lado, o carácter infractor do imaginário e o carácter iniciático do prazer acentuam os processos de ocultação, por intermédio do uso de símbolos, metáforas, alegorias e metonímias; o hiato entre a imaginação e a realidade conduz à efabulação e à proliferação de um discurso baseado em situações puramente ficcionais. Por isso, as autoridades oficiais, civis e até eclesiásticas, podem tolerá-lo em meios restritos, embora o condenem publicamente. A prevalência do discurso maniqueísta sobre a carne torna mais rigorosa a necessidade de ocultação e acentua o incitamento à efabulação». In José Mattoso, Naquele Tempo, Ensaios da História Medieval.

Cortesia de Temas e Debates, Círculo de Leitores/JDACT