quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Eugénio Lisboa: Feliciano Falcão. Um Homem Bom. «Foi aí que tive oportunidade de conhecer bem a personalidade generosa, aberta, inteligente e bondosa do médico alentejano»

Cortesia de edicolibri

Um Homem Bom
«Em 1954, mais precisamente, em Fevereiro de 1954, fui colocado, como oficial miliciano de infantaria, no Batalhão de Caçadores 1, em Portalegre. Não por escolha, mas porque, em Mafra, fora um cadete miliciano repetidamente rebelde e assaz irrecuperável. Como finalista de engenharia, conviera-me ficar colocado em Lisboa ou perto de. Mas a classificação mortífera, em comportamento, empurrara-me para uma unidade de quase fronteira: Portalegre, que ficava a cinco horas de Lisboa, de comboio - castigo que baste.
Castigo?
Como se enganavam! Ao fundo do túnel da contrariedade, brilhava uma luzinha entre o tímido, o provocatório e o intenso: em Portalegre, «cidade do Alto Alentejo», vivia José Régio, cuja obra se me abrira, em Lourenço Marques, actualmente Maputo, em 1945 ou 1946, quando um colega do liceu, Alberto Parente, me ofereceu, pelos meus anos, o primeiro volume de A Velha Casa, que trazia o título aliciante e aterrador de Uma gota de sangue. Era todo um mundo que se me oferecia! Foi por aí - não pela poesia - que comecei.

Hernâni Cidade
Cortesia de premioliterariohernanicidade
A poesia veio um pouco mais tarde, quando, já estudante, em Lisboa, li o Fado (sim, também não comecei pelos Poemas de Deus e do Diabo, que só vim a adquirir, numa 2.ª edição, comprada no Lobito-Angola - quando, em 1952, ali passei, de barco, a caminho de Lourenço Marques). Em suma, fazer o sexto ano de engenharia (com trabalhos práticos pelo meio), a cinco horas de distância e com os constrangimentos das obrigações e da disciplina militares, era bico-de-obra! Seria talvez compensado, se chegássemos à fala, pelo convívio com o Régio! O que não era seguro, dada a minha timidez de urso, neste caso agravada pela veneração que me inspirava a obra do grande escritor. Para quem não é atrevido, não é fácil a aproximação dos deuses - ficam longe e alto e costumam esconder-se atrás de cortinas... Pelo menos, assim o pensava ou assim me fazia pensar a reputação de inacessível que a lenda colara ao autor de As Encruzilhadas de Deus. Os próprios textos inculcavam uma solidão trágica e relatavam, com pérfida minúcia, os escolhos ao amor e à amizade. As traições espreitavam, o convívio humano era um território minado. Não era certo que o exílio em Portalegre me viesse afiazer a contrapartida com que sonhava.

Cortesia decarruagem23
Tudo foi, porém, surpreendentemente diferente e mais fácil. Um ou dois dias depois de termos chegado, o Rui Serrão, colega miliciano, extrovertido e desenvolto, aparece-me no Batalhão com boas notícias:
  • conhecera, no Café Central, um Dr. Feliciano Falcão, alentejano, analista e investigador, cortês e prestável, que se oferecera para apresentar o Régio aos oficiais acabados de chegar, que nisso tivessem interesse.
O Régio ia ao Central todos os dias e, se quiséssemos, depois do jantar... Fiquei excitado e apavorado.
Conhecer o Régio, aqueles olhos, de certeza, perscrutadores (A Velha Casa, O Jogo da Cabra Cega, a poesia toda, as Histórias de Mulheres não deixavam margem a dúvidas), afrontar o Régio, ser julgado pelo Régio... Julgo que, antes desse encontro, conheci, depois do almoço, o nosso intermediário, o Dr. Falcão, que logo me acalmou: era, visivelmente, com o seu sotaque alentejano carregado, um homem de uma grande candura e bondade, culto, interessado, passa-culpas... Não tinha dúvidas de que gostaríamos de conhecer o Régio e de que ele gostaria de conviver connosco. Pareciam-me certezas a mais, mas a urbanidade serena, tranquiltzadora e sorridente do Dr. Falcão de algum modo me confortavam. E, de facto, à noite, depois do jantar, no Café Central, o Dr. Falcão, com uma simplicidade não afectada, juntou-nos a uma mesa. Comecei mal - o nervoso era tanto, que entornei a chávena de café, agravando a tensão.

Cortesia de falcaodejade
Durante todo o ano que passei em Portalegre, reuni-me, quase  diariamente, à mesa onde pontificava José Régio e na qual participavam, frequentemente, Feliciano Falcão, Adelino Santos, Arsénio Ressurreição (pintor), Rui Serrão (meu colega e amigo) e, também, o capitão Saraiva e sua mulher (que fora aluna de Régio) - entre outros.
Foi aí que tive oportunidade de conhecer bem a personalidade generosa, aberta, inteligente e bondosa do médico alentejano.

Algumas vezes, em sua casa, ouvíamos música, porque era possuidor de uma vasta e ecléctica discoteca, que incluía desde música medieval até aos contemporâneos mais cotados. Régio, que olhava com alguma malícia para a «abertura» cândida de Feliciano Falcão, nem sempre terá sido justo para o seu amigo - chegaram mesmo a cortar relações.
A pureza do médico chegava a exasperá-lo e, com o seu feitio provocador, tentava atiçá-lo... «ensaiá-lo». Admirei Régio e tornei-me seu amigo, mas senti por Falcão um profundo e respeitoso afecto.

Feliciano Falcão era um aderente do Partido Comunista, o que quase me fazia sorrir:
  • a profunda ética e delicadeza do seu proceder (nada compatível com o moto de que os fins justificam os meios), o seu profundo amor à arte, despreocupado de saber se ela «Servia» ou «não Servia», a sua profunda e nunca desmentida admiração e empatia com a obra do autor de Mas Deus É Grande faziam dele um bem singular exemplo de comunista...
Confesso que pouco me ralava o que ele era ou julgava ser: pata mim, era úm dos mais nobres e puros exemplares de homem que até então (e até hoje!) me foi dado encontrar.

Cortesia de falcaodejade
Quando, ao fim de um ano, saí de Portalêgre, estive uns meses em Lisboa e, depois, regressei a África, onde perdi o contacto com o Dr. Feliciano Falcão e só voltei a reatá-lo, em 1978, em vésperas de partir de Lisboa para Londres. Visitei-o ainda na sua casa da Serra, em Portalegre e trocámos uma ou outra carta. Mas deu-se, pouco antes da sua morte, um facto significativo, que foi, para mim, o testemunho de fogo da espécie de amizade que nos unia (sentia por ele, como disse, um profundo, ainda que não expresso, afecto e fiquei, por essa carta, a saber - a confirmar - que o mesmo sentia ele por mim).
A sua missiva anunciava, de modo discreto, que o seu fim poderia não estar para demora. E ele admitia que pudesse não ser um fim «agradável». 

Pedia-me, portanto, que fosse seu amigo, como se deve sê-lo em tempo de crise. Fiquei uns dias a pensar no que poderia responder-lhe - quando tive notícia do seu falecimento. Hoje, gosto de acreditar que lhe teria respondido, dizendo-lhe que contasse comigo». In Memória Viva, Feliciano Falcão, Edições Colibri 2003, António Ventura, ISBN 972-772-440-X.
Cortesia de Edições Colibri/JDACT