segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

António Arroyo: A Viagem de Antero de Quental à América do Norte. Parte I

(1856-1934)
Cortesia de mundolusiada

A Viagem de Antero de Quental à América do Norte

A António Sérgio, filosofo, poeta e lobo do mar.
Muitas vezes ouvira referencias à viagem que, na companhia dum amigo seu, capitão de navios, Antero de Quental fizera aos Estados Unidos, quando esta designação apenas se aplicava á grande republica norte-americana. E, ha alguns anos, sucedeu-me até ser apresentado a «O homem que levou o Antero á America».
 - Aqui o tem você ! ...
Após a intimativa destas duas frases curtas e sugestivas, fiquei-me a olhar para ele, enleado pela bondade jovial e simples com que me recebia; e quando, seguidamente a esta apresentação, nos encontrávamos os dois, conversávamos sempre dos amigos comuns, assim como de Antero e João de Deus. Vai porém em trez ou quatro mezes fez-me ele um primeiro relato da viagem a que tanta vez haviam aludido deante de mim. Mas não pude, nessa ocasião, tomar nota alguma; porque estávamos no Rocio e eram as horas excitantes, genesiacas, em que a chusma da burocracia esmagada pelo trabalho e a onda do madamismo trabalhado pela burocracia se cruzam nos passeios da capital. Pedi-lhe pois que me permitisse ir a sua casa, a fim de colher os elementos indispensáveis para uma descrição exacta dos sucessos ocorridos nessa ida e volta transatlântica. Acedeu desde logo; e ontem lá fui bater à sua porta, na Rua de S. Paulo. Recebeu-me afectuosamente e contou-me o que eu agora confio aos meus estimáveis leitores, procurando comunicar à prosa o sabor salgadio que toda a narrativa marítima deve ter, e que de facto tinha a que ele me fez.
Não vão porém lançar á conta de abuso a pormenorisada exposição de casos anteriores à viagem de Antero propriamente dita, embora na aparência pouco ligados com ela. É indispensável fazê-la para bem caracterisar as cousas e as pessoas de que aqui devo ocupar-me. Porque, embora se não trate de fenómenos sobrenaturais, certo é que quasi tudo quanto vou expôr contrasta acentuadamente com a soma e nada interessante monotonia nacional.

Joaquim de Almeida Negrão
Retrato feito em Londres em 1870, meses depois da viagem à America do Norte.
António Carneiro

Em fins de 1867 arribou a Portimão um patacho americano que vinha da Sicilia com fogo a bordo. Era um excelente barco, ainda novo, construido no Canadá quatro ou cinco anos antes e medindo 273 metros cúbicos de arqueação, umas quatrocentas toneladas métricas. Como fosse de enxofre toda a carga, meteram-no no fundo, logo que ele entrou a barra. Mas, uma vez extinto o incêndio, levantou-se questão entre as companhias de seguros e os donos do navio, ou os consignatários da carga, em virtude da qual foi esta retirada para outro barco, a fim de se vender o patacho em hasta publica.
Realizou-se a praça em principios de 1868, sendo na opinião geral muito baixa a base de licitação. E realisou-se no ponto onde tinham depositado o espolio e mais pertences do navio, no antigo Largo do Cais, hoje Praça do Visconde de Bivar, que já então era um centro de reunião e passeio muito concorrido.
Ao principio haviam sido formados vários lotes, de entre os quasi chegara a ser adjudicado um composto da roda do leme e de vários pertences pequenos. Pensou-se porém que este processo não daria bons resultados; e, como alguém sugerisse a ideia de se reunirem todos os restantes lotes num só, assim o fizeram, julgando preferível.
E tudo isso foi posto em praça pela quantia de 2.500$000 réis aproximadamente.
Durante uma boa meia hora não apareceram licitantes. Dir-se-ia que ninguém ousava abrir os lanços. Mas evidentemente era necessário abri-los, fosse como fosse, sem o que poderia eternisar-se a arrematação.
Estava ali, por acaso, conversando com varias pessoas e com o juiz que presidia à praça, a quem conhecia pessoalmente, o snr. Joaquim de Almeida Negrão que, ao tempo, era um moço de 28 anos, solteiro, grande pescador, marinheiro por atavismo e caçador. Vivia em casa de seu pae, proprietário local e rendeiro do conhecido capitalista José Maria Eugénio de Almeida; auxiliava-o nos seus trabalhos, levando aliás vida folgada e divertindo-se á larga (1).
Joaquim Negrão, despedindo-se do juiz, e quando ia ter com uns amigos que passeavam no largo,  sugestionado por alguém que lhe disse: «lance você», intendeu cobrir com cem reis a base da licitação; mas fê-lo convencido de que apenas abria a serie dos lanços.
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(1) No In Memoriam, a pag. 454, escreve o snr. Jayme Batalha Reis: «N'esses tempos (1868 a 1872) que, esteve em Lisboa, ia muitas vezes comnosco, ao João de Deus, o Joaquim Negrão, - o pescador de atum, artista, negociante, aventureiro, romântico, e capitão de navios com quem o Anthero fez a viagem de
Nova York.
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Ficou portanto muito surpreendido quando, decorrida outra meia hora, veiu um oficial de deligencias procurá-lo ao passeio, «da parte do snr. dr. Juiz», e dizer-lhe que este o esperava para assinar o termo da arrematação.
Havia-lhe sido ajudicado o lote inteiro! . .
E atrapalhou-se um pouco: já porque não tinha dinheiro para satisfazer o compromisso, contraido de mais a mais sem autorisação paterna, já porque, não pagando dentro das vinte e quatro horas, era fatalmente capturado. E, naquele primeiro momento, nem se lembrou de que, dias antes, em casa de seu pai, ouvira dizer que a avaliação do navio tinha sido muito baixa. Dirigiu-se porém imediatamente ao juiz e pediu-lhe que anulasse o lanço. Mas era impossível : tratava-se dum facto publico e notório. Teve pois de contar o caso ao pai, suavisando todavia o golpe com um certo numero de considerações: afinal o barco era bom e barato, e, quando convenientemente reparado e arranjado, poderia vender-se sem perda alguma, senão até com lucro. O pai concordou; pagava o navio no dia seguinte e, logo depois, mandava proceder a concertos.
Comprador é que não aparecia. Resolveu-se por isso levar o patacho aos nossos portos maiores o vendê-lo aí. Mas, a fim de evitar despezas, o navio metia carga de figo para o Porto e para lá seguia com José da Silva Ribeiro por capitão. A bordo ia também Joaquim Negrão, matriculado como sobrecarga.
O patacho nacionalisára-se, passando a chamar-se Carolina, não se sabe bem porquê.
No Porto entregaram a carga ao destinatário, sem contudo poderem encontrar comprador para o navio. Sucedia o mesmo que no Algarve. O que, todavia, não contrariava Negrão, que de lá partira com a idea fisgada de gozar o barco em proveito próprio.

Cortesia de paulocampos

Entretanto ele não perdia o seu tempo:  - tomava lições particulares com um preparador de náutica. Deve dizer-se que Negrão não era noviço em pilotagem quando ali chegou. Quatorze ou quinze anos antes, tendo já o 3.° ano dos liceus, havia viajado a bordo dum outro navio, também pertencente a seu pai, e visitado, entre outras terras, a Madeira, Barbados e Demerara. O piloto de então, por nome Mascarenhas, era um empirico boçal e indolente. O rapaz foi aprendendo todo o serviço de marinheiro e seguidamente o de piloto. Além de isto, graças ao conhecimento que tinha de Aritmética e Geometria, e da Geografia, conseguiu sem dificuldade trabalhar com as Taboas de Norie, em cuja introdução, consagrada á arte de navegar, adquiria conhecimentos profissionais muito superiores aos do piloto Mascarenhas. E, durante o regresso a Portugal, foi já ele que fez todas as observações de bordo.
Sucedia ainda que, havendo sido educado no colégio dos Inglezinhos, em Lisboa, falava correntemente a lingua franceza e a ingleza, ensinadas por professores dos respectivos paizes.
Com uma tal preparação e com as lições particulares de náutica a que me referi, apresentou-se a fazer exame de piloto perante a Intendência de marinha, o que era permitido ao tempo. Para este facto concorreram ainda dois outros motivos: em primeiro lugar, Negrão estava descontente com o capitão de bordo, o Silva Ribeiro; além de isso conhecia pessoalmente o intendente de marinha e poude expôr-lhe francamente a necessidade em que se achava de despedir o homem. E assim fez, logo que o aprovaram no exame e lhe passaram carta provisória de pilotagem. A tripulação ficou porém toda com ele.

Antero de Quental
Cortesia de lutadoresdarepublica

Mas, como disse, no Porto não se encontrou comprador para o barco, sendo novamente preciso tomar carga. E, aparecendo em Viana do Castelo um carregamento de madeira com destino a Málaga, para lá se dirigiu Negrão capitaniando o Carolina. De Málaga voltou em lastro a Portimão; mas logo aí metia carga de cortiça preparada, para Rotterdam e Hamburgo. Visitou a Holanda. Seguiu depois para o porto alemão e percorreu uma grande parte da região do Elba. De ali, com um carregamento de garrafas, garrafões e outros vidros, foi a Newcastle-on-Tyne, de onde regressou a Lisboa com carvão.
Fez ainda duas viagens pequenas: uma, de Lisboa para Portimão, com cortiça em bruto; outra, de Portimão para o Porto, com carga de figo. E foi então que empreendeu a sua maior viagem. Já de todo lhe passara a ideia de vender o Carolina. No Porto, em meados de 1869, recebia carga de sal, cebola, etc, para Halifax, na Nova Escócia, costa oriental do Canadá.

João de Deus
Cortesia de trintanosdepois

Ora, desde Maio ou Junho desse mesmo ano de 1869, João de Deus achava-se em Lisboa, num estado que hoje se diria de neurastenia. Necessitava mudar de ares e de vida. Negrão, que era seu amigo de tu ha muitos anos, e que também viera a Lisboa enquanto o navio no Porto metia carga, viu-o e convidou-o a acompanhá-lo á America. O poeta sempre desejou visitar os Estados Unidos. E, como o capitão do Carolina esperasse, com as recomendações que tinha para o nosso cônsul em Halifax, obter carga deste ponto para os portos da grande republica norte-americana, aceitou o convite.
Negrão regressou ao Porto e, quando se aproximava o dia da partida, escreveu. João de Deus foi para a capital do norte em companhia de Antero de Quental, alojando-se ambos no Hotel do Estanislau, à praça da Batalha, onde residia Germano Vieira de Meireles, redactor do Primeiro de Janeiro e grande amigo de Antero dos tempos de Coimbra.

Cortesia de caxinasafreguesia

Foi de algumas semanas a sua estada no  Porto. Vários amigos vinham, de quando em quando, passar uns dias com os dois poetas ao hotel; entre eles, Negrão lembra-se do Alberto Sampaio, de Guimarães, o futuro autor das Vilas do norte de Portugal, já hoje falecido como quasi todos os demais. Durante essas semanas passaram-se porém com uns e outros as scenas mais divertidas.
Rara era a noite em que Antero e Germano não tinham uma discussão violentíssima que terminava duma forma sempre engraçada. Dormiam ambos no mesmo quarto e davam-se como irmãos (2). Chegados ao quarto, começavam conversando tranquilamente; mas a pouco e pouco iam perdendo a serenidade, já altercavam com calor. Do tu cá, tu lá, passavam ao você, até terminarem, no auge da contenda, em V. Exa. diz, faz ou acontece.
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(2) As filhas de Germano Vieira de Meireles, como se sabe foram as herdeiras dos bens de Antero de Quental.
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Nesse ponto intervinha João de Deus:

- Oh! menino, Oh! menino!...
Antero metia-se então na cama, apagava a luz e dizia sacudidamente:
- Boa noite.
E Germano, sentando-se á mesa, punha-se a encher linguados para o jornal. In António Arroyo, University of Califórnia Libraries, PQ 9261 Q34Z5ar, AA 000 453 081 2, A Viagem de Antero de Quental à América do Norte, Edição da Renascença Portuguesa, Porto.

Cortesia de University of Califórnia Libraries/JDACT