quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

António Nobre: «Tardes de outomno! ó tardes de novena! Outubro! Mez de Maio, na lareira! Tardes... Ó favos rubros! os meus labios são abelhas, E eu ando a construir meu cortiço de mel... »

Cortesia de auladeliteraturaportuguesa 

A Poezia do Outomno
Noitinha. O sol, qual brigue em chammas, morre
Nos longes d'agoa... Ó tardes de novena!
Tardes de sonho em que a poezia escorre
E os bardos, a sonhar, molham a penna!

Ao longe, os rios de agoas prateadas
Por entre os verdes cannaviaes, esguios,
São como estradas liquidas, e as estradas
Ao luar, parecem verdadeiros rios!

Os choupos nus, tremendo, arripiadinhos,
O chale pedem a quem vae passando...
E nos seus leitos nupciaes, os ninhos,
As lavandiscas noivam piando, piando!

O orvalho cae do céu, como um unguento.
Abrem as boccas, aparando-o, os goivos...
E a larangeira, aos repellões do vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos.

E o orvalho cae... E, á falta d'agoa, rega
O val sem fruto, a terra arida e nua!
E o Padre-Oceano, lá de longe, prega
O seu Sermão de Lagrymas, á Lua!

Tardes de outomno! ó tardes de novena!
Outubro! Mez de Maio, na lareira!
Tardes...
Lá vem a Lua, gratiae plena,
Do convento dos céus, a eterna freira!
António Nobre, in «Só»
 
Cortesia de sebodomessias

Febre Vermelha
Rozas de vinho! Abri o calice avinhado!
Para que em vosso seio o labio meu se atole:
Beber até cair, bebedo, para o lado!
Quero beber, beber até o ultimo gole!

Rozas de sangue! Abri o vosso peito, abri-o!
Montanhas alagae! deixae-as trasbordar!
As ondas como o oceano, ou antes como um rio
Levando na corrente Ophelias de luar...

Camelias! Entreabri os labios de Eleonora!
Desabrochae, á lua, a ancia dos vossos calis!
Dá-me o teu genio, dá! ó tulipa de aurora!
E dá-me o teu veneno, ó rubra digitalis...

Papoilas! Descerrae essas boccas vermelhas!
Apagae-me esta sede estonteadora e cruel:
Ó favos rubros! os meus labios são abelhas,
E eu ando a construir meu cortiço de mel...

Rainunculos! Corae minhas faces-de-terra!
Que seja sangue o leite e rubins as opalas!
Tal se vêm pelo campo, em seguida a uma guerra,
Tintos da mesma cor os corações e as balas!...

Chagas de Christo! Abri as petalas chagadas!
N'uma raiva de cor, n'uma erupção de luz!
Escancarae a bocca, ás vermelhas rizadas,
Cancros de Lazaro! Feridas de Jezus...

Flores em braza! Orgaos da cor! Tirava
Operas d'oiro, podesse eu, das vossas teclas.
Volcões de Maio! ungi minha pelle de lava!
Dae-me energia, audacia, ó pequeninos Heclas!

Dae-me do vosso sangue, ó flores! entornae-o
Nas veias do meu corpo estragado e sem cor:
Que vida negra! Foi escripto, á luz do raio,
O triste fado que me deu Nosso Senhor...

Scismo já farto de velar minha alma doente,
Não dura um mez siquer, minhas amigas, vede!
Mas, mal vos vejo, então, pulo alegre e contente
A uivar, como os leões quando os ataca a sede!

Corto o estrellado céu, voo atravez do espaço,
Cruzo o infinito e vou rolar aos pés de Deus,
Como se accaso fosse, em catapultas de aço,
Por um Titan de bronze atirado a esses céus!

Amo o vermelho. Amo-te, ó hostia do sol-posto!
Fascina-me o escarlate. Os meus tedios estanca:
E apezar d'isso, ó cruel hysteria do Gosto,
Certa flor da minh'alma é branca, branca, branca...
António Nobre, in «Só»

Cortesia de O Citador/JDACT