segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Fundação Robinson: O Convento de São Francisco de Portalegre. Parte II. «Face a esta situação, em 1568 e em conformidade com um Breve de Pio V os Claustrais são expulsos definitivamente de Portugal, mas já em 1542, D. João III consegue que o convento portalegrense passe para os Observantes, numa tentativa de acabar com esta paisagem pouco edificante da vida conventual»

Fotografia de Fernando Guerra
Cortesia da

«Entretanto, desde o Concílio Ecuménico de Vienne (1311-1372) que as reformas no seio da Ordem tinham permitido o surgimento de duas correntes, o Conventualismo (Claustrais) e a Observância, muito mais fiel que a anterior aos ideais de pobreza e humildade definidos por São Francisco de Assis na sua regra. Sob o pontificado de Leão X, em 1517, a separação jurídica dos movimentos torna-se efectiva e cada um deles passa a ter uma organização própria. Poucos anos depois (1525), a Ordem dos Frades Menores da Regular Observância também se subdivide com o surgimento dos Frades Menores Capuchinhos.

São Francisco de Portalegre era um convento de frades Claustrais, a reformação da Ordem Franciscana que D. João III (1527-1557) tudo fez para expulsar de Portugal. Em tempos de Reforma e Contra-Reforma, o Rei «piedoso»? mostrou, desde o início do seu reinado, um enorme esforço para devolver às ordens religiosas o anterior zelo pelas regras que as inspiravam de forma a terminar com o relaxamento e laxismo em que muitos religiosos viviam nesta época.

Cortesia de cratoeuroconsult
Era uma «realidade alarmante, vivem mais como seculares que como religiosos», escreveu D. João III para o ministro da Cúria em 1546, tendo certamente em conta as informações que lhe eram enviadas pelos seus Corregedores. O da comarca de Portalegre, Diogo Lourenço, tinha precisamente enviado ao Rei duas cartas em 1541 informando-o da murmuração que corria entre o povo acerca das demasiado frequentes visitas dos frades de São Francisco às Clarissas, fosse a que horas fosse e com e desculpa de que iam fazer confissão e dizer missa. Como se não bastasse, também os frades do Convento de Nossa Senhora da Estrela de Marvão e de outros lugares, eram frequentadores do Convento de Santa Clara. O Corregedor sugere então, entre outras medidas, que a portaria do convento das freiras fosse mudada para uma rua de maior movimento e visibilidade em vez de estar «em huns bequos e travessas escusas e ocultas», o que facilitava com certeza as visitas nocturnas e clandestinas às monjas. Meses mais tarde a situação não estava resolvida e o Corregedor informa de novo D. João III, descrevendo os frades do convento: são todos mancebos e «perdem a vergonha e obediencia ao guoardiam, que non dam por elle». Estes 30 frades, que «todos sam moços [...] de xxx annos para baixo», são «res mal avezada», «gado bravo», «sempre viveram à sua vontade e seu modo» e «non se podem sojugar nem domar por hum soo Homem».

Cortesia de porabrantes
Face a esta situação, em 1568 e em conformidade com um Breve de Pio V os Claustrais são expulsos definitivamente de Portugal, mas já em 1542, D. João III consegue que o convento portalegrense passe para os Observantes, numa tentativa de acabar com esta paisagem pouco edificante da vida conventual.
Assim, em 1550, é estipulado por Patente do Padre Frei Francisco da Conceição, Provincial da Província dos Algarves, que todos os bens de raiz dos frades Claustrais - capelas, bens e propriedades - fossem administrados pelas freiras do Convento de Santa Clara da cidade, devido ao regime de pobreza praticada pelos Observantes e que não se coadunava com a posse de qualquer tipo de bem material. Ficaram assim as Clarissas daquele convento encarregues de olhar pelos frades, seus irmãos provinciais e de regra, com a obrigação de pagarem as missas das capelas aos religiosos.
Na passagem para a Observância e em cumprimento do que tinha sido definido, os frades cederam a água da Cerca do convento à cidade e o povo, agradecido, mantém-nos como possuidores da chave da arca da água. Esta situação desagradou à Câmara, que recorreu ao Rei, mas este interveio a favor dos religiosos, donos da água desde 1266.

D. Dinis, acabou esta obra em 1354 em honra de S. Francisco
Museu Municipal de Portalegre, 4021/0004 Ep
Fotografia de Glória Aguiam
Cortesia da Fundação Robinson

São desta época algumas capelas e sepulturas da igreja, com destaque para a de Gaspar Fragoso (1571).
Entre os séculos XVI e XIX, havia em Portugal dois grupos de Províncias e Custódias dos Observantes:
  • As dos Frades Menores da Regular Observância;
  • As da Estreita Observância (frades descalços ou capuchos).
Da primeira faziam parte, além da Província de Portugal e da Província dos Algarves, a Província de São João Evangelista dos Açores (criada em 1639) e as Custódias de Santiago Menor na Madeira (1683) e da Conceição dos Açores (1715). Na Estreita Observância, com um regime de vida ainda mais austero, enquadravam-se as Províncias da Piedade (1517), da Arrábida (1560), de Santo António (1568), da Soledade (1673) e da Conceição (1705). Era da Província da Piedade que fazia parte o outro convento Franciscano de Portalegre - o de Santo António (cuja segunda e definitiva fundação ocorreu em1572).

Também no século XVII houve reformas no edifício, possivelmente pelo aumento do número de frades, pelas necessidades da casa e fruto do espírito profundamente religioso dos monarcas. A 10 de Agosto de 1602, D. Filipe III (1598-1627) manda que os oficiais da Câmara dêem 40 mil reis ao convento acrescidos de outros 150 mil para reparo do Refeitório, «que estava caindo». Como este Alvará não foi cumprido, o Guardião do convento pede ao rei que o volte a mandar executar, o que se verifica através de uma carta de 26 de Junho de 1613. Em 1611, o mesmo Rei ordena que se dêem ao Convento de São Francisco 200 cruzados para reparos, especialmente do Coro «que se achava, por antigo, muito arruinado».

Placa de instituição de um hospital no Convento de S. Francisco por pedro Domingos da Porta.
Museu Municipal de Portalegre, 4022/0005 Ep
Fotografia de Glória Aguiam
Cortesia da Fundação Robinson

Em meados do século XVIII, os Franciscanos não viviam o dinamismo de outrora mas ainda assim tinham em Portugal cerca de 180 casas e aproximadamente 4000 religiosos. Em 1755, estavam sob administração do Convento de São Francisco de Portalegre 64 capelas, o que prova que as doações dos fiéis se mantinham, dando alguma prosperidade à casa.
Nesta época, se em termos de regra não houve mudanças substanciais rio convento, houve contudo grandes reformas no edificado que deixaram a sua marca e que, se por um lado apagaram vestígios anteriores, por outro lado nos mostram como a sua conservação e adaptação eram ainda importantes e necessárias. Em 1711, parece ter havido melhoramentos, embora as maiores obras sejam provavelmente de 1720, quando era Provincial da Ordem o Padre Frei Francisco do Rosário. Nesse ano começou a ser refeito o Dormitório, que era antigo e estava «arruinado». Esta construção veio levantar de novo a questão da posse da água do convento. Foi feito um novo registo da mesma água, o que fez com que o povo, esquecido já de que os frades eram os seus verdadeiros proprietários, se revoltasse e exigisse a intervenção régia. De novo o Rei decidiu a favor dos Franciscanos, mas anos mais tarde - em 1733 - o monarca alterou a sua decisão em favor da Câmara de Portalegre, que lhe tinha pedido que todo o anel de água do convento fosse entregue ao povo.
No século XIX, após a Guerra Civil (1832-1834) e na senda da legislação que Mouzinho da Silveira (l780-1849) começara a delinear enquanto ministro da Fazenda e da Justiça do governo liberal da regência de D. Pedro (1798-1834) nos Açores e no Porto, são nacionalizados todos os bens das Ordens Religiosas e extintas as suas casas por decreto de 30 de Maio de 1834. Para os liberais, além da decadência a que as Ordens religiosas tinham chegado, os frades formavam uma sociedade separada do resto da sociedade civil, um Estado dentro do Estado que importava incorporar para que, com todos os cidadãos em igualdade de circunstâncias e comunhão de interesses, se alcançasse o bem-comum.

Cortesia da Fundação Robinson

É nesta perspectiva que se deve compreender as suas medidas para encerrar os conventos e a nacionalização dos seus bens. Deste modo, esses bens acabavam também por contribuir para o pagamento da dívida pública e para o equilíbrio da economia ao serem vendidos.

Nesta conjuntura, ao fim de aproximadamente seis séculos de funcionamento, o Convento de São Francisco de Portalegre foi extinto. Como exigia a lei, para esse propósito, foi elaborado um inventário mais ou menos exaustivo dos bens do convento e do seu valor área por área: Igreja, Capela-mor, Capela dos Paços, Capela de Santa Helena, Capela do Senhor Ecce Homo, Capela de Santo António, Capela da Senhora do Rosário, Capela de São Diogo, Capela da Senhora da Conceição, capelinha, Sacristia, Dormitório, Celas (23 no total), Procuração, Livraria, Cárcere, Adega, Celeiro, Cozinha e Refeitório. Foram inventariantes José Januário Teixeira Leite e Castro (Juiz de Fora), Joaquim Caetano Guapo (Tabelião do Judicial), Frei Joaquim da Puríssima Conceição de Maria Guerreiro (Guardião do Convento de São Francisco) e um grupo de sete avaliadores especialistas em diferentes áreas (por exemplo ourivesaria, tecidos ou mobiliário). A parte imóvel - compreendendo o edifício do convento, as Celas e a Igreja com nove altares - foi avaliada em três contos e trezentos mil reis; a Cerca - «com seu ramo de olival e hortinha anexa à dita Cerca, que parte com o mesmo Convento, com rua do Pinheiro, com o outeiro e o Corro público (actual Praça da República) desta cidade» - avaliada em quatrocentos mil reis acrescidos de uma renda anual de vinte mil.

Os 19 frades que residiam ou pertenciam ao convento em 1834 tiveram de o abandonar, ingressando na vida eclesiástica ou seguindo a vida secular, e o imóvel ficou disponível para o Estado o poder vender, arrendar ou instalar serviços públicos, como sucedeu por todo o país. Apesar da Igreja ter ficado aberta ao culto até 1910, em parte do extinto convento e da sua Cerca foi instalado um quartel e anos depois, uma pequena oficina de tratamento de cortiça, propriedade de Thomas Reynolds. Em 1848, George William Robinson (1813-1895) compra essa oficina e transforma-a na Fábrica Robinson, arrematando ao Estado parte das instalações do convento - seis casas e quintal, Refeitório e parte do Dormitório da direita (por cerca de doze mil, cento e cinquenta reis anuais) - e da sua Cerca (trinta e um mil cento e cinquenta reis) até as adquirir definitivamente em hasta pública à Fazenda Nacional em 1868.

Cortesia da Fundação Robinson

Para além de quartel (o claustro ainda hoje está afecto ao Ministério da Defesa) e fábrica de cortiça, os espaços pertencentes ao antigo Convento de São Francisco tiveram usos muito variados. Serviram como anexo do Liceu Nacional de Portalegre, instalações do Arquivo Distrital de Portalegre nos anos 80 e 90, da CERCI (até à actualidade), do grupo de teatro «O Semeador» de casa de arrumação e despejo municipal, zona de habitação (até à actualidade) e outros fins. Apesar de ter sido considerado «Imóvel de interesse público» em 1967, o seu estado geral foi-se degradando sem que o Estado, seu proprietário, se preocupasse grandemente com a sua preservação.

Actualmente, no âmbito do protocolo celebrado a 19 de Julho de 2005 entre Fundação Robinson e o IPPAR - Instituto Português do Património Arquitectónico (agora designado IGESPAR - Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico) - assiste-se à sua recuperação, restauro, requalificação e reconversão como espaço cultural, integrado numa nova visão da cidade que assim recupera a memória e a dignidade de um dos elementos arquitectónicos que há mais tempo marcam a paisagem portalegrense e a sua história». In Jorge Maroco Alberto, Publicações da Fundação Robinson, nº 10, 2009, ISSN 1646-7116. Ver Bibliografia, páginas 21 a 25.

Continua, numa próxima oportunidade.

Cortesia de Publicações da Fundação Robinson/JDACT