domingo, 21 de novembro de 2010

Camões e a Infanta D. Maria: Parte V, «Às vezes, Camões pede à infanta que corresponda ao seu amor lembrando-lhe até a brevidade da vida. Outras vezes limita-se a confessar-lhe que a ama. Até que, enfim, o arrojado poeta, sempre disposto a "Dar ás cousas que via outro sentido" supôs que a infanta correspondia ao seu amor»

(1521-1577)
Cortesia de publicacoes foriente

Com a devida vénia a José Maria Rodrigues (3 1761 06184643.2), Coimbra 1910.

E sem querer dizer que o meio empregado por Camões fosse uma declaração escrita, o que é certo é que mais de uma das suas poesias se pôde considerar como para isso destinada. Lêam-se, por exemplo, estas oitavas (epistola IV):
I
Senhora, se encobrir por alguma arte
Pudera esta occasião de meu tormento,
Não crêas que chegara a declarar-te
Este meu perigoso pensamento.
Mas, por mais que te offenda, não sou parte
No crime de tamanho atrevimento.
Elle é de Amor, e delle fui forçado
A que te declarasse o meu cuidado.

II
Se merece castigo a confiança
Com que descubro agora o que padeço,
Aqui prompto me tens: toma a vingança.
Que, por tão grave culpa, te mereço.
Bem me podes negar toda esperança,
Mas eu não desistir deste começo,
Porque tempo e fortuna não são parte
Para deixar uma hora só de amar-te.

III
Já que ver-te os meus olhos alcançaram,
Descansem neste bem com alegria,
Pois já, com ver os teus, tanto ganharam,
Quanto, estando sem vê-los, se perdia.
Que gloría querem mais, se a ver chegaram
Aquella pura luz, que vence o dia ?
Qual mór bem ha no mundo que querer-te,
Se não ha mais que ver, despois de ver-te ?

IV
Minhas dores mortaes, bella senhora,
Tiraram a virtude ao soffrimento,
E, fazendo-se mais em qualquer hora,
Levando vão trás ti meu pensamento.
Porém soberbos vejo desde agora,
Por a causa gentil de seu tormento.
Minha alma, meu desejo, meu sentido,
Porque á tua belleza se hão rendido.

V
A par de tua rara formosura
Se desconhece o mór merecimento ;
A tua claridade torna escura
Do sol a clara luz em um momento.
Se Zeuxis, ao formar bella figura,
A vista em ti pudera pôr attento.
Mais alto original houvera achado,
Para admirar o mundo co traslado.

VI
Aquelles que escreveram mil louvores
De formosura, graça e gentileza,
Todos foram, senhora, uns borradores
De tua perfeitíssima belleza,
Agora se vê claro em teus primores
Que em ti se esmerou mais a natureza,
E que eram os seus cantos prophecias
Do que havias de ser em nossos dias.

VII
Vê, pois, se vinha a ser culpável falta
Em mi o não render-te amante a vida,
E se deixar de amar gloria tão alta
Era digno da pena mais crescida.
Emfim, eu te amarei, que Amor me exalta
Co castigo de culpa assi atrevida.
E, quando della caia, maior gloria
Terá o Tejo, que o Pó, com sua historia.

Cortesia de marcelosilva
Às vezes, Camões pede à infanta que corresponda ao seu amor lembrando-lhe até a brevidade da vida:

Formosos olhos, que cuidado dais
Á mesma luz do sol, mais clara pura
Que sua esclarecida formosura,
Com tanta gloria vossa, atrás deixais :

Se, por serdes tão bellos, desprezais
A fineza de amor que vos procura,
Pois tanto vedes, vede que não dura
O vosso resplandor, quanto cuidais.

Colhei, colhei, do tempo fugitivo
E de vossa belleza o doce fruto,
Que em vão fóra de tempo é desejado.

E a mi, que por vós morro e por vós vivo,
Fazei pagar a Amor o seu tributo,
Contente de por vós lho haver pagado.
(Soneto 269).

Outras vezes limita-se a confessar-lhe que a ama:

Mote (alheio)
Vos teneis mi corazon.

Glosa
Mi corazon me han robado
Y Amor, víendo mis enojos,
Me dijo : Fuéte llevado
Por los mas hermosos ojos
Que, desque vivo, he mirado.

Gracias sobrenaturales
Te lo tienen en prision.
Y, si Amor tiene razon,
Señora, por las señales,
Vos teneis mi corazon.

Cortesia de numismatas

Até que, enfim, o arrojado poeta, sempre disposto a


Dar ás cousas que via outro sentido,

supôs que a infanta correspondia ao seu amor.
Foi assim que ele interpretou as lágrimas que em uma ocasião lhe viu deslisar pelas lindas faces:

Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faiscas me mostrou um dia,
Donde um puro crystal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao soffrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro effeito. O pensamento
Endoidece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, em um momento,
De lagrimas de honesta piedade
Lagrimas de immortal contentamento.
(Soneto 8).

Cortesia de bahgagem
O templo foi erguido em 1568 por determinação da Infanta D. Maria,
filha de Manuel I, por ocasião da criação da freguesia de Santa Engrácia.

Foi também essa a impressão que lhe deixou o aspecto da formosa senhora, em uma noite de luar:

Diana prateada, esclarecida
Com a luz que do claro Phebo ardente,
Por ser de natureza transparente,
Em si, como em espelho, reluzia.

Cem mil milhões de graças lhe (?) influia,
Quando me appareceo o excellente
Raio de vosso aspecto, differente
Em graça e amor do que soía.

Eu, vendo-me tão cheio de favores,
E tão propinquo a ser de todo vosso,
Louvei a hora clara e a noite escura,

Pois nella déstes cor a meus amores ;
Donde collijo claro que não posso
De dia para vós já ter ventura (1).
(Soneto 280)

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(1) Loucamente apaixonado pela infanta, compreende-se com que calor, com que entusiasmo, Camões recitaria, na presença dela, algumas das suas poesias, sobretudo as que envolviam segunda intenção. Era natural que uma ou outra vez fizesse comover até às lágrimas a inteligente e amável senhora, ou a levasse a manifestar-lhe directamente quanto o apreciava. Natural era também que ele, na disposição de espirito em que se achava, desse às cousas que via outro sentido.
Eis mais uma dessas poesias, escritas com segundo intuito:

Mote
Irme quiero, madre,
Á aquella galera,
Con el marinero
Á ser marinera.

Voltas
Madre, si me fuere,
Do quiera que vó,
No lo quiero yo,
Que el Amor lo quiere.

Aquel niño fiero
Hace que me mueva,
Por un marinero,
A ser marinera.

El que todo puede,
Madre, no podrá,
Pues el alma vá,
Que el cuerpo se quede.

Veja-se como o iludido poeta manifestava agora o seu.
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Con el por que muero
Voy, porque no muera ;
Que, si es marinero,
Seré marinera.

Es tirana ley
Del niño señor
Que, por un amor,
Se deseche un rey.

Pues desta manera
Quiero irme, quiero,
Por un marinero
Á ser marinera.

Decid, ondas, cuando
Vistes vos doncella,
Siendo tierna y bella,
Andar navegando ?

Mas qué no se espera
Daquel niño fiero ?
Vea yo quien quiero,
Sea marinera !

Cortesia de wook
A joven destas redondilhas abandonava a mãe, para se aventurar por amor, a uma vida cheia de riscos; a bela infanta tinha visto fugir-lhe a ocasião de ir para junto da mãe querida e aí casar com o herdeiro do trono de França. E não muito antes (1545) tinha morrido o que estivera para ser o seu segundo noivo francês, o duque de Orléans.
Enquanto à intenção reservada do poeta, basta ler o que Duriano diz acerca de Filodemo, no acto V, cena IV, do respectivo auto: «Esse galante, em satisfação de muitas mercês que elrei de Dinamarca lhe fizera, metteu-se de amores com uma sua filha, a mais moça; e como era bom justador, manso, discreto, galante, partes que a qualquer mulher abalam, desejou ella de ver geração delle. Senão quando, livre-nos Deus! se lhe começou de encurtar o vestido; e, porque estes sirgos não se desistem em nove dias, senão em nove meses, foi-lhe a elle então necessário acolher-se com ella ... Acolheu-se em uma galé; e vede la princeza em uma galera nueva, con el marinero á ser marinera».
Entusiasmo, por julgar bem sucedido o atrevimento de pensar na infanta:

Onde mereci eu tal pensamento,
Nunca de ser humano merecido ?
Onde mereci eu ficar vencido
De quem tanto me honrou co vencimento ?

Em gloria se converte o meu tormento,
Quando vendo-me estou tão bem perdido,
Pois não foi tanto mal ser atrevido,
Como foi gloria o mesmo atrevimento.

Vivo, senhora, só de contemplar-vos ;
E, pois esta alma tenho tão rendida,
Em lagrimas desfeito acabarei.

Porque não me farão deixar de amar-vos
Receios de perder por vós a vida,
Que por vós vezes mil a perderei.
(Soneto 202).

Eis o que então afirmava do amor, quem depois tanto dele se havia de queixar:

Quem diz que Amor é falso ou enganoso,
Ligeiro, ingrato, vão, desconhecido,
Sem falta lhe terá bem merecido
Que lhe seja cruel ou rigoroso.

Amor é brando, é doce e é piedoso.
Quem o contrario diz, não seja crido ;
Seja por cego e apaixonado tido
E aos homens e inda aos deoses odioso.

Se males faz Amor, em mi se vêm ;
Em mi mostrando todo o seu rigor,
Ao mundo quis mostrar quanto podia.

Mas todas suas iras são de Amor ;
Todos estes seus males são um bem,
Que eu por todo outro bem não trocaria.
(Soneto 205)
 
Cortesia de Banco de Portugal 
O equivoco em que estava o poeta aumentou-lhe, por certo, o arrojo, e a infanta compreendeu emfim do que se tratava.
Adoptando então uma norma de proceder, que estava em perfeita harmonia com o que sabemos do seu carácter, a sisuda filha do Rei Venturoso deu claramente a intender ao audacioso poeta que lhe não aceitava a côrte.
Ouçamos o interessado, dando-nos conta da nova fase em que entravam os seus amores:

Mote
Olhos, não vos mereci
Que tenhais tal condição:
Tão liberais para o chão,
Tão irosos para mi !

Volta
Baixos e honestos andais,
Por vos negardes a quem
Não quer mais que aquelle bem,
Que vós no chão espalhais ?

Se pouco vos mereci,
Não me estimeis mais que o chão,
A quem vós o galardão
Dais, e mo negais a mi.

Agora já o poeta se não queixa do olhar indiferente da infanta, como tanta vezes o havia feito:

Mote
Ojos, herido me hábeis ;
Acabad ya de matarme !
Mas, muerto, volved á mirarmc.
Porque me resusciteis.

Voltas
Pues me distes tal herida,
Con gana de darme muerte,
El morir me es dulce suerte,
Pues con morir me dais vida.

Ojos, qué os deteneis ?
Acabad ya de matarme !
Mas, muerto, volved á mirarme,
Porque me resusciteis.

La llaga cierto ya es mia,
Aun que, ojos, vós no querrais.
Mas, si la muerte me dais,
El morir me es alegria.

Y assi digo que acabeis,
O ojos, ya de matarme.
Mas, muerto, volved á mirarme,
Porque me resusciteis.
(Redondilhas).

Nunca manhã suave,
Estendendo seus raios por o mundo,
Despois de noite grave,
Tempestuosa, negra, em mar profundo,
Alegrou tanto nau, que já no fundo
Se vio, em mares grossos,
Como a luz clara a mi dos olhos vossos.

Aquella formosura,
Que só no virar delles resplandece,
E com que a sombra escura
Clara se faz e o campo reverdece,
Quando o meu pensamento se entristece,
Ella e sua viveza
Me desfazem a nuvem da tristeza.

O meu peito, onde estais,
É para tanto bem pequeno vaso.
Quando acaso virais
Os olhos, que de mi não fazem caso.
Todo, gentil senhora, então me abraso,
Na luz que me consume,
Bem como a borboleta faz no lume.

Se mil almas tivera.
Que a tão formosos olhos entregara,
Todas quantas pudera,
Por as pestanas delles pendurara ;
E, enlevadas na vista pura e clara,
Postoque disso indinas,
Se andaram sempre vendo nas meninas.

E vós, que descuidada
Agora vivereis de taes querellas,
De almas minhas cercada,
Não pudésseis tirar os olhos dellas,
Não póde ser que, vendo a vossa entre ellas,
A dor, que lhe mostrassem
Tantas, uma só alma não abrandassem.

Mas, pois o peito ardente
Uma só póde ter, formosa dama,
Basta que esta sómente,
Como se fossem mil e mil, vos ama,
Para que a dor da sua ardente flamma
Comvosco tanto possa,
Que não queirais ver cinza uma alma vossa.
(Ode 5ª).

Cortesia de arquivohistoricomadeira
Formosos olhos, que, na idade nossa.,
Mostrais do ceo certíssimos sinais,
Se quereis conhecer quanto possais,
Olhai-me a mim, que sou feitura vossa.

Vereis que do viver me desapossa
Aquelle riso com que a vida dais ;
Vereis como de Amor não quero mais,
Por mais que o tempo corra, o dano possa.

E se ver-vos nesta alma emfim quiserdes,
Como em um claro espelho, alli vereis
Também a vossa, angélica e serena.

Mas eu cuido que, só por me não verdes,
Ver-vos em mim, senhora, não quereis.
Tanto gosto levais de minha pena !
(Soneto 38).

O que agora o tortura, mas ao mesmo tempo lhe dá vida, é o áspero desprego com que a infanta olha para ele, se por acerto o vê, é a crueza com que por ela é tratado:

Vossos olhos, senhora, que competem
Com o sol em belleza e claridade,
Enchem os meus de tal suavidade,
Que em lagrimas, de vê-los, se derretem.

Meus sentidos, prostrados, se submettem
Assi, cegos, a tanta majestade
E da triste prisão da escuridade,
Cheios de medo, por fugir, remettem.

Porém, se então me vedes, por acêrto,
Esse áspero desprezo, com que olhais,
Me torna a animar a alma enfraquecida.

Oh gentil cura ! Oh estranho desconcerto !
Que dareis c'um favor que vós não dais,
Quando com um desprezo me dais vida ?
(Soneto 65).

Cortesia de psitasideo
Esses cabellos louros e escolhidos,
Que o ser ao áureo sol estão tirando,
Esse ar immenso, adonde naufragando
Estão continuamente os meus sentidos ;

Esses furtados olhos, tão fingidos,
Que minha vida e morte estão causando,
Essa divina graça, que, em fallando.
Finge os meus pensamentos não ser cridos ;

Esse compasso certo, essa medida,
Que faz dobrar no corpo a gentileza ;
A divindade em terra, tio subida :

Mostrem já piedade e não crueza,
Que são laços que Amor tece na vida,
Sendo em mi soffrimento, em vós dureza.
(Soneto 104).

Às vezes, a infanta, suppondo que o poeta já teria desistido da sua louca pretenção, e não querendo, por certo, que se reparasse na maneira como o tratava, olhava-o com vista mais suave. Era o bastante para ele ficar doido de contente!

Continua, numa próxima oportunidade! JDACT

Cortesia do Arquivo Histórico/Universidade de Coimbra/PQ 9214 R64 1910 C1 Robarts/JDACT