quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A Arte de Furtar: Um texto panfletátio. Monumento da prosa barroca. Dominantemente atribuída ao jesuíta Padre Manuel da Costa (1601-1667). Uma obra literária emblemática do período da Restauração e o ponto mais alto da literatura portuguesa de costumes dos séculos XVI a XVIII. A sua redacção ocorreu em 1652, melhor, ainda em vida de D. João IV, ao qual foi oferecida pelo autor

Cortesia de humbertoosousa

A Arte de Furtar
António José Saraiva e Óscar Lopes

Monumento da prosa barroca, a Arte de Furtar, hoje dominantemente atribuída ao jesuíta Padre Manuel da Costa (1601-1667), é uma das obras literárias emblemáticas do período da Restauração e o ponto mais alto da literatura portuguesa de costumes dos séculos XVI a XVIII. A sua redacção ocorreu, como se depreende do texto, em 1652, ou seja, ainda em vida de D. João IV, ao qual foi oferecida pelo autor, embora só quase um século depois tenha sido impressa.


Entre as obras de conteúdo panfletário merece atenção especial Arte de Furtar, escrita no tempo da Restauração, que excede em interesse informativo e graça literária as obras atrás mencionadas (exceptuando a Fastigímia) e que ainda hoje ,e lê com agrado, como se verifica aliás pelo número considerável e ainda não devidamente controlado de edições que tem tido.

Cortesia de cascais
Na sua História da Literatura PortuguesaAntónio José Saraiva e Óscar Lopes destacam na Arte de Furtar a «graça literária» e o alto «valor informativo», de que, segundo eles, só a Fastigímia de Tomé Pinheiro da Veiga se aproximaria no século XVII. A obra de Manuel da Costa, cuja autoria aceitam e corroboram, é para Saraiva e Lopes um depoimento literário muito completo da realidade social do tempo de D. João IV, em que «se espelham ao vivo todos os principais problemas em que se debatia a administração interna e todo o jogo das forças sociais». Destacam, ao lado da dimensão panfletária e crítica da obra, o «aspecto apologético, de claro apoio ao rei». Segundo eles, o livro conteria capítulos que «são autênticas súmulas para uso régio». Ao nível da descrição dos factos isolados e dos comportamentos sociais típicos, Saraiva e Lopes acham que o realismo da Arte de Furtar é imbatível, superando de muito o melhor dos Apólogos Dialogais (de Francisco Manuel de Melo), e acrescentam: «Possívelmente, nenhum panfleto da nossa literatura o iguala»

(…)

Vejamos as suas opiniões:
A Arte de Furtar é um depoimento literário muito completo e variado acerca da realidade social do tempo de D. João IV; nela se espelham ao vivo todos os principais problemas em que se debatia a administração interna e todo o jogo das forças sociais.
Trata-se, em grande parte, de um panfleto desmascarador dos vários tipos de logro e irregularidade, ao longo dos diversos escalões da sociedade, desde os mendigos artificialmente chagados e das pequenas trapaças de artífice «mecânico» ou de regateira, até às grandes roubalheiras e compadrios do alto funcionalismo.

Cortesia de submarino
Tão concretas e precisas são as informações que, além de uma incontestável familiaridade com as secretarias de Estado, não pode deixar de pensar-se que este livro aproveita experiência de confessionário, tanto mais que o autor alude várias vezes à confissão e ao receio do Inferno como única escápula que há para a dissimulação de toda e gente. Por outro lado, se o livro tem interessado sobretudo pelo escândalo e desmascaramento, há também a apontar um seu outro importante aspecto:
  • O aspecto apologético de claro apoio ao rei, decerto D. João IV, a quem foi dedicado, a quem foi mesmo dado, provavelmente muito antes da sua impressão, a julgar pelo que se diz na alusão que é feita a Manuel da Costa no Arquivo da Companhia de Jesus em Roma.
Com efeito, o livro contém capítulos que são autênticas súmulas para uso régio, como o capítulo XVI, que discute os direitos dinásticos dos Filipes e da Casa de Bragança à Coroa Portuguesa; o capítulo XXI, que é um resumo das normas de direito natural e internacional referentes à guerra; o capítulo L, que sumariamente define um conceito de soberania e discute a jurisdição régia a respeito do clero; e o capítulo final, que recapitula a série de medidas anteriormente sugeridas ao rei para se pôr cobro aos desmandos indicados.

Cortesia de auladeliteraturaportuguesa
Sob o aspecto jurídico, as teses da Arte de Furtar são fundamentalmente as mesmas que vamos encontrar nos doutrinários seus contemporâneos. Sublinhemos a tese, característica, como veremos, dos jesuítas da Restauração, segundo a qual a soberania vem de Deus para os reis, não imediatamente, mas através de um pacto de sujeição dos respectivos povos, que estes não têm a faculdade de revogar ou limitar (capítulo L).

O autor aspira, pois, a um reformismo regalista, ainda fora dos moldes pombalinos da Dedução Cronológica (dentro dos quais o rei governa por delegação divina imediata e, portanto, «de ciência certa e poder absoluto»), e estabelece uma fundamentação acentuadamente teológica da política e da moral, como na época se encontra mesmo em doutrinários laicos como António de Sousa de Macedo. Mas não é menos sensível a preocupação de definir as prerrogativas régias perante Roma: «O Papa não é senhor temporal de tudo, porque Cristo só o poder espiritual lhe deu, e o temporal só os povos lho podiam dar, e consta que não lho deram».
Arrostando com o riso de que «lhe levantem que sente mal do eclesiástico», o autor condena a excessiva sonsa, «perto de um milhão», que trienalmente em Portugal se gasta em «demandas de lana-caprina» junto da Cúria Romana, pois «há neste Reino dez mil frades, e mais de quinze mil freiras, e mais de trinta mil clérigos, e mais de cinquenta mil embaraços de consciência em leigos». Se ligarmos estas frases com a frouxa apologia de «certos servos de Deus a quem murmurações chamam por desdém da Apanhia, levantando-lhe que mandam olhar a gente para o céu enquanto lhe apanham a terra» e com uma exaltação da intolerância inquisitorial completamente oposta à tese que a Companhia de Jesus sustentou sob D. João IV (capítulo LX), torna-se problemática a autoria do jesuíta Manuel da Costa.

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Deve notar-se no entanto que este não era bem visto pelo confrade que o identifica como autor, e que foi castigado pelos seus superiores com o afastamento para o Algarve. É de admitir que o texto inicial tivesse sofrido interpolações e modificações por parte do livreiro que parece ter especulado com as primeiras edições do livro em 1744 ou pouco antes. Isso explicaria, entre outras coisas contraditórias, a inserção de dois capítulos (XLV e XLVI) inconfundivelmente decalcados de António Vieira quanto ao estilo e quanto às teses:
  • «O dinheiro é o nervo da guerra, e onde falta, arrisca-se a vitória»; a condenação formal da escravatura; o elogio da missionação e, indirectamente, da Companhia de Jesus.
Quanto à composição literária, a Arte de Furtar é bem uma obra barroca.
Em vez de dispor os assuntos segundo uma ordem lógica, de acordo com o desenvolvimento do interesse intrínseco, arruma-os em obediência a um critério formai conceptista. Começa por uma série de capítulos aliciantes pelo seu paradoxo moral: Como para furtar há arte, que é ciência verdadeira; Como a arte de -furtar é muito nobre; Da antiguidade e professores desta arte; Como os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos dos outros ladrões? etc. O conjunto do livro subordina-se a uma classificação dos estilos de roubo, segundo analogias e oposições verbais e engenhosas como unhas pacíficas, unhas militares, unhas temidas' unhas tímidas, disfarçadas, maliciosas, descuidadas, sábias, ignorantes, singelas, dobradas, etc. Tal classificação tem um mero interesse de chamadoiro, e deve emparelhar-se com o processo de trabalho literário de um D. Francisco Manuel de Melo, tal como se denuncia pelo confronto entre a Feira de Anexíns e os Apólogos Dialogais. Consequência inevitável de tal formalismo é o terem os leitores de reconstruir por si um panorama social que lhes é dado às tiras, com repetições e insistências escusadas, ou com aproximações meramente verbais.

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Para dissimular a arbitrariedade da classificação, cada capítulo vem normalmente iniciado por uma historieta destinada a justificar o paradoxo sempre renovado, por contrastes imprevistos, da titulação; ou se estadeia o virtuosismo conceptista do autor, digno de um D. Francisco Manuel ou de um AntónioVieira. O jogo de correspondências alegóricas, de distinções verbalistas, de trocadilhos, a frequência do hipérbato datam, sem confusão possível, esta obra; o seu interesse, porém, mantém-se não só graças ao seu valor como depoimento, mas também pelo brilho e pela vivacidade que o salvam da poeira do tempo e que são admiravelmente servidos pela assimilação dos recursos expressivos da linguagem oral.

Cortesia da Fundação Calouste Gulbenkian/wikipédia/JDACT