segunda-feira, 26 de julho de 2010

Navegações Portuguesas: Parte VI. Mestre João Faras

Cortesia de educaja

Com a devida vénia a Carlos Manuel Valentim e ao Instituto Camões.

Na Biblioteca da Ajuda encontra-se um códice com a cota 50-V-19, contendo dois manuscritos, um dos quais é uma cópia do século XVI da Tragédia de la Insigne Reina D. Isabel; o outro uma tradução do latim para castelhano do De Situ Orbis de Pompónio Mela. O autor desta tradução está claramente identificado: Mestre João Faras, bacharel em artes e medicina, «físico» e cirurgião de D. Manuel I. A data exacta em que foi efectuada a tradução não se encontra definida. No entanto, tudo indica, tendo em conta a referência D. Manuel I e o tipo de letra do manuscrito, tratar-se de uma tradução feita ainda nos últimos anos do século XV. Joaquim Barradas de Carvalho identificou, nas suas margens, para cima de cento e cinquenta notas feitas por Duarte Pacheco Pereira, que da tradução da obra de Pompónio Mela se serviu abundantemente como uma das fontes principais para redigir a sua própria obra - o Esmeraldo de Situ Orbis.
Muitos foram os autores a se ocuparem da identificação de Mestre João Faras. De Sousa Viterbo a Fontoura da Costa e Joaquim Bensaúde, de Carlos Malheiros Dias a Frazão Vasconcelos, passando pelos últimos estudos de Barradas de Carvalho todos, de uma forma ou de outra, invocaram valiosos elementos que se conjugam num consenso ainda hoje reinante: o autor da tradução do latim para castelhano «aportuguesado» do De Situ Orbis de Pompónio Mela é o mesmo autor que expediu em Maio 1500, para D. Manuel, uma carta sobre problemas náuticos e astronómicos, quando se encontrava a bordo de um dos navios da armada cabralina. A célebre carta, que aparece escrita num português castelhanizado, eivado de erros, é um testemunho esclarecedor dos problemas e das expectativas, técnicas e mentais, com que o meio náutico português se debatia na viragem do século XV. Pelo conteúdo da epístola percebe-se que Mestre João ia encarregado de fazer observações astronómicas. Os dois únicos documentos referenciados que testemunham a ligação ao meio náutico português de Mestre João Faras, a tradução do De Situ Orbis e a carta enviada a D.Manuel I, foram associados pela forma como o seu autor se identifica - pelo mesmo nome próprio, Mestre João; pelo mesmo grau académico, «bacharel em artes e medicina»; pela dificuldade com que escreve português; e pelo cargo que ocupava, «físico e cirurgião d'el rei D. Manuel». Nada de mais significativo se encontrou. Contudo, novos estudos, depois de uma leitura mais atenta da documentação, essencialmente os registos contidos nas Chancelarias reais, apontam para a sua origem sefardita, servidor dos duques de Bragança e morador na região entre Douro e Minho, tendo-se baptizado com o nome de João de Paz, quando D. Manuel I decretou o baptismo forçado dos judeus, por volta de 1496-97. Situação que terá permitido a Mestre João Faras continuar a exercer as suas funções, mas agora com outro sobrenome, que identificava a sua «devota» conversão. Ora, este «simples» facto veio relançar toda a interpretação sobre a figura do astrólogo, permitindo uma nova grelha de explicações tanto para as razões que motivaram a tradução do De Situ Orbis como para a carta enviada a D. Manuel, a 1 de Maio de 1500. A começar, por exemplo, pela forma como Mestre João se dirige ao rei na carta, queixando-se das acanhadas dimensões do navio onde trabalhava.

De facto, os novos dados, que apontam Mestre João como um servidor da Casa de Bragança, dão-nos o ensejo de inferir que o astrólogo viajava no navio cuja propriedade era dividida entre D. Álvaro de Bragança, irmão do Duque D. Jaime, e alguns mercadores florentinos e genoveses proprietários de casas comerciais em Portugal. Tratava-se da caravela redonda, mercante, «Nossa Senhora da Anunciada» (porte: c.100 tonéis; tripulação: c.30 homens) comandada por Nuno Leitão da Cunha. Sem dúvida um dos navios mais pequenos da armada, que é referido em 1501 por Affaitadi como «lo piu pícolo de tuti» . Notória é a forma como Mestre João Faras, em 1500, se empenha nos cálculos das latitudes e nas observações dos astros no hemisfério sul, ao mesmo tempo que vai testando um novo instrumento de medição astronómica, importado do Índico, o Kamal. O seu conhecimento minucioso das regras e dos métodos de navegação, com referências, em determinado passo da sua carta, ao «regimento do astrolábio», deixa perceber que estava a par dos desenvolvimentos teóricos e práticos da náutica, não sendo de todo descabido supor o seu envolvimento nos estudos e traduções - trabalho geralmente entregue a judeus peninsulares - que conduziram aos regimentos que nós hoje em dia apelidamos de Guias Náuticos de «Munique» e «Évora», que se conhecem edições de cerca de 1508 e 1516 respectivamente. É muito provável que os seus préstimos, nesse domínio, continuassem a despertar a atenção do poder central, porque temos notícia de no ano de 1513 se apresentar em Lisboa para trabalhar como astrólogo, passando a auferir de uma tença. Este registo prova efectivamente que Mestre João não morava em Lisboa e que frequentemente prestava serviços ao rei no campo da náutica astronómica, permitindo-lhe o contacto os sectores mais ligados às navegações, pois só assim se explica a referência, na sua carta, a um mapa mundo, ainda hoje desconhecido, em posse de Pero Vaz Bisagudo, que assinalava onde estava a nova terra descoberta em Abril de 1500. Nos últimos registos de que dispomos, temos notícia de Mestre João se ter estabelecido no Porto com a sua família. Temos assim que, tal como Pero Vaz de Caminha, Mestre João Faras era originário das terras entre Douro e Minho, no qual o Porto constituía o seu centro; e tal como Pero Vaz de Caminha, também Mestre João não ocupava um cargo em exclusivo ao serviço de D. Manuel I. Cortesia de Carlos Manuel Valentim
Cortesia de alvarohfernandes

A Carta do Mestre João Faras, versão:
Senhor:
O bacharel mestre João, físico e cirurgião de Vossa Alteza, beijo vossas reais mãos. Senhor: porque, de tudo o cá passado, largamente escreveram a Vossa Alteza, assim Aires Correia como todos os outros, somente escreverei sobre dois pontos. Senhor: ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos em terra, eu e o piloto do capitão-mor e o piloto de Sancho de Tovar; tomamos a altura do sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional, pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17°, e ter por conseguinte a altura do pólo antártico em 17°, segundo é manifesto na esfera. E isto é quanto a um dos pontos, pelo que saberá Vossa Alteza que todos os pilotos vão tanto adiante de mim, que Pero Escolar vai adiante 150 léguas, e outros mais, e outros menos, mas quem diz a verdade não se pode certificar até que em boa hora cheguemos ao cabo de Boa Esperança e ali saberemos quem vai mais certo, se eles com a carta, ou eu com a carta e o astrolábio. Quanto, Senhor, ao sítio desta terra, mande Vossa Alteza trazer um mapa-múndi que tem Pero Vaz Bisagudo e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; mas aquele mapa-múndi não certifica se esta terra é habitada ou não; é mapa dos antigos e ali achará Vossa Alteza escrita também a Mina. Ontem quase entendemos por acenos que esta era ilha, e que eram quatro, e que doutra ilha vêm aqui almadias a pelejar com eles e os levam cativos. Quanto, Senhor, ao outro ponto, saberá Vossa Alteza que, acerca das estrelas, eu tenho trabalhado o que tenho podido, mas não muito, por causa de uma perna que tenho muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão; e também por causa de este navio ser muito pequeno e estar muito carregado, que não há lugar para coisa nenhuma. Somente mando a Vossa Alteza como estão situadas as estrelas do (sul), mas em que grau está cada uma não o pude saber, antes me parece ser impossível, no mar, tomar-se altura de nenhuma estrela, porque eu trabalhei muito nisso e, por pouco que o navio balance, se erram quatro ou cinco graus, de modo que se não pode fazer, senão em terra. E quase outro tanto digo das tábuas da Índia, que se não podem tomar com elas senão com muitíssimo trabalho, que, se Vossa Alteza soubesse como desconcertavam todos nas polegadas, riria disto mais que do astrolábio; porque desde Lisboa até às Canárias desconcertavam uns dos outros em muitas polegadas, que uns diziam, mais que outros, três e quatro polegadas, e outro tanto desde as Canárias até às ilhas de Cabo Verde, e isto, tendo todos cuidados que o tomar fosse a uma mesma hora; de modo que mais julgavam quantas polegadas eram, pela quantidade do caminho que lhes parecia terem andado, que não o caminho pelas polegadas. Tornando, Senhor, ao propósito, estas Guardas nunca se escondem, antes sempre andam ao derredor sobre o horizonte, e ainda estou em dúvida que não sei qual de aquelas duas mais baixas seja o pólo antártico; e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro; e a estrela do pólo antártico, ou Sul, é pequena como a da Norte e muito clara, e a estrela que está em cima de toda a Cruz é muito pequena. Não quero alargar mais, para não importunar a Vossa Alteza, salvo que fico rogando a Nosso Senhor Jesus Cristo que a vida e estado de Vossa Alteza acrescente como Vossa Alteza deseja. Feita em Vera Cruz no primeiro de maio de 1500. Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do sol, que não por nenhuma estrela; e melhor com astrolábio, que não com quadrante nem com outro nenhum instrumento. Do criado de Vossa Alteza e vosso leal servidor. Johannes, artium et medicine bachalarius.

Cortesia de jeocaz
Bibliografia:
  • CARVALHO, Joaquim Barradas de, La Traduction Espagnole du "De Situ Orbis" de Pomponius Mela par Maître Joan Faras, Lisboa, J.I.U., 1974;
  • COSTA, Abel Fontoura da, A Marinharia dos Descobrimentos, Lisboa, Edições Culturais da Marinha, 4ª ed. 1983;
  • VALENTIM, Carlos Manuel, "Mestre João Faras - Um Sefardita ao Serviço de D. Manuel I" in Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 1, 2000 pp. 167 –220.
Instituto Camões, 2002

Cortesia do Instituto Camões/JDACT