sábado, 3 de julho de 2010

Gil Vicente: O Poeta da Virgem. Exprime-se de forma inspirada, dionisíaca, nem sempre obedecendo a princípios estéticos e artísticos de equilíbrio. É também versátil nas suas manifestações. Mostra-se dócil, humano e ternurento na sua poesia de cariz religioso e quando se trata de defender aqueles a quem a sociedade maltrata

(1465?-1536)
Cortesia de wikipédia
Gil Vicente é geralmente considerado o primeiro grande dramaturgo português, além de poeta de renome. Há quem o identifique com o ourives, autor da Custódia de Belém, mestre da balança, e com o mestre de Retórica do rei Dom Manuel. Enquanto homem de teatro, parece ter também desempenhado as tarefas de músico, actor e encenador. É frequentemente considerado, de uma forma geral, o pai do teatro português, ou mesmo do teatro ibérico já que também escreveu em castelhano - partilhando a paternidade da dramaturgia espanhola com Juan del Encina.
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A obra vicentina é tida como reflexo da mudança dos tempos e da passagem da Idade Média para o Renascimento, fazendo-se o balanço de uma época onde as hierarquias e a ordem social eram regidas por regras inflexíveis, para uma nova sociedade onde se começa a subverter a ordem instituída, ao questioná-la. Foi o principal representante da literatura renascentista portuguesa, anterior a Camões, incorporando elementos populares na sua escrita que influenciou, por sua vez, a cultura popular portuguesa.
A sua obra vem no seguimento do teatro ibérico popular e religioso que já se fazia, ainda que de forma menos profunda. Os temas pastoris, presentes na escrita de Juan del Encina vão influenciar fortemente a sua primeira fase de produção teatral e permanecerão esporadicamente na sua obra posterior, de maior diversidade temática e sofisticação de meios. De facto, a sua obra tem uma vasta diversidade de formas:
  • o auto pastoril;
  • a alegoria religiosa;
  • narrativas bíblicas;
  • farsas episódicas;
  • autos narrativos.

O seu filho, Luís Vicente, na primeira compilação de todas as suas obras, classificou-as em autos e mistérios (de carácter sagrado e devocional) e em farsas, comédias e tragicomédias (de carácter profano).
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Contudo, qualquer classificação é redutora - de facto, basta pensar na Trilogia das Barcas para se verificar como elementos da farsa (as personagens que vão aparecendo, há pouco saídas deste mundo) se misturam com elementos alegóricos religiosos e místicos (o Bem e o Mal).
Gil Vicente retratou, com refinada comicidade, a sociedade portuguesa do século XVI, demonstrando uma capacidade acutilante de observação ao traçar o perfil psicológico das personagens. Crítico severo dos costumes, de acordo com a máxima que seria ditada por MolièreRidendo castigat mores» - rindo se castigam os costumes). Gil Vicente é também um dos mais importantes autores satíricos da língua portuguesa. Em 44 peças, usa grande quantidade de personagens extraídos do espectro social português da altura. É comum a presença de marinheiros, ciganos, camponeses, fadas e demónios e de referências – sempre com um lirismo nato – a dialectos e linguagens populares.

Entre as suas obras:
  • Auto Pastoril Castelhano (1502);
  • Auto dos Reis Magos (1503), escritas para celebração natalina;
  • Auto da Sibila Cassandra (1513), que, embora até muito recentemente tenha sido visto como um prenúncio dos os ideais renascentistas em Portugal, retoma uma narrativa já presente na General Estória de Afonso X;
  • A trilogia de sátiras Auto da Barca do Inferno (1516), Auto da Barca do Purgatório (1518) e Auto da Barca da Glória (1519), considerada a sua obra prima;
  • A Farsa de Inês Pereira (1523);
  • Auto de Mofina Mendes, onde se inclui uma anunciação, de acordo com os temas marianos. Como aspectos positivos, a imaginação e originalidade evidenciada, o sentido dramático e o conhecimento dos aspectos relacionados com a problemática do teatro.

Alguns autores consideram que a sua espontaneidade, ainda que reflectindo de forma eficaz os sentimentos colectivos e exprimindo a realidade criticável da sociedade a que pertencia, perde em reflexão e em requinte. De facto, a sua forma de exprimir é simples, chã e directa, sem grandes floreados poéticos.
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Gil Vicente exprime-se de forma inspirada, dionisíaca, nem sempre obedecendo a princípios estéticos e artísticos de equilíbrio. É também versátil nas suas manifestações. Se, por um lado, parece ser uma alma rebelde, temerária, impiedosa no que toca em demonstrar os vícios dos outros, quase da mesma forma que se esperaria de um inconsciente e tolo bobo da corte, por outro lado, mostra-se dócil, humano e ternurento na sua poesia de cariz religioso e quando se trata de defender aqueles a quem a sociedade maltrata.
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O seu lirismo religioso, de raiz medieval e que demonstra influências das Cantigas de Santa Maria está bem presente, por exemplo, no Auto de Mofina Mendes, na cena da Anunciação, ou numa oração dita por Santo Agostinho no Auto da Alma. Por essa razão é, por vezes, designado por «poeta da Virgem».
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O seu lirismo patriótico presente em «Exortação da Guerra», Auto da fama ou Cortes de Júpiter, não se limita a glorificar, em estilo épico e orgulhoso, a nacionalidade: de facto, é crítico e eticamente preocupado, principalmente no que diz respeito aos vícios nascidos da nova realidade económica, decorrente do comércio com o Oriente (Auto da Índia). O lirismo amoroso, por outro lado, consegue aliar algum erotismo e alguma brejeirice com influências mais eruditas.
A obra de Gil Vicente transmite uma visão do mundo que se assemelha e se posiciona como uma perspectiva pessoal do Platonismo. «Existem dois mundos - o Mundo Primeiro, da serenidade e do amor divino, que leva à paz interior, ao sossego e a uma resplandecente glória, como dá conta sua carta a D. João III, e o Mundo Segundo, aquele que retrata nas suas farsas, um mundo todo ele falso, cheio de canseiras, de desordem sem remédio, sem firmeza certa». Estes dois mundos reflectem-se em temas diversos da sua obra. Por um lado, o mundo dos defeitos humanos e das caricaturas, servidos sem grande preocupação de verosimilhança ou de rigor histórico.

Vejamos alguns Autos, numa primeira abordagem.
Auto da Índia é uma peça de Gil Vicente. O Auto teve a primeira representação em 1509, em Almada perante a rainha D. Leonor. O Auto da Índia fala do adultério como consequência das viagens dos Descobrimentos. Constança, insatisfeita com seu marido e ao que tudo indica casada apenas por interesse, arranja dois amantes (um castelhano chamado Juan de Zamora e um português chamado Lemos) enquanto o marido está numa viagem com destino à Índia. A cena desenrola-se em sua casa, com a cumplicidade a contragosto de sua empregada, designada simplesmente por Moça, que tenta a custo defender a moral do seu Senhor. No final do auto o marido retorna à casa, e Constança, cheia de cinismo e falsidade recebe-o de braços abertos, pois este retorna cheio de riquezas.

O Velho da Horta. Esta farsa é o seu argumento que um homem honrado, já velho, tinha uma horta e andando uma manhã por ela espairecendo, sendo o seu hortelão, veio uma moça de muito bom parecer buscar hortaliça, e o velho em tanta maneira se enamorou dela, uma alcoviteira que um dia fora comprar ervas e vendo que o velho estava passando por um sofrimento, perguntou o que havera acontecido?. Vendo que o velho parecia estar realmente apaixonado ofereceu-se para ajudar a conquistá-la.  A alcoviteira ia até a um lugar, falava para o velho que tinha ido até lá para ver a mulher desejada, e toda vez que voltava falava que precisava de algo, e o velho gastando todas as suas economias. A mulher do velho logo descobre dessa suposta «traição». Logo aparece uma mocinha, a mando de sua tia para pagar uma conta na horta do velho. E descobriu através da mocinha que a moça se casara com um jovem da mesma idade. Então chega o delegado policial e prende a alcoviteira, que não devolve o dinheiro e é açoitada em praça pública. E o velho senhor acaba ficando pobre, sem família nem dinheiro, nem a moça por quem ele estava apaixonado.
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Nesta farsa, Gil vicente retrata os infortúnios do amor de um velho que, ironizado pela moça, termina a peça revelando uma grande frustação. No entanto, a preocupação da farsa vicentina não se restringe ao amor incorrespondido, mas vai além da simples crítica social, atingindo as críticas morais, de interesses pessoais e, sobretudo, materiais. Ademais,revela com bastante fidelidade as ideologias e costumes desse periodo de transição para o Renascimento, mas que ainda conserva hábito como o açoite em praça pública, ato que ainda perpetuaria por muitos séculos adiante. Gil Vicente regista o comportamento e a idelogia do homem medieval, mas também já se prenuncia sobre as novas ideologias que estavam por iniciar uma nova página na história da literatura e da sociedade portuguesa.

Cortesia de História do Teatro/wikipédia/JDACT