sexta-feira, 18 de junho de 2010

João António Gordo: No Alto Alentejo. Crónicas e Narrativas

(1881-1965)
Castelo de Vide
Cortesia do GA de Castelo de Vide
Com a devida vénia ao Grupo de Amigos de Castelo de Vide, publico um texto de João António Gordo.
«Dos Tempos que Foram»
A quem, como nós, veio ao mundo pouco após ter começado o último quartel do século passado, formidáveis e alarmantes contrastes o destino reservou. na curta. escabrosa e alucinante travessia da existência. Bons e fugidios tempos, esses dias áureos da infância em que ainda os múltiplos problemas da vida de então, - quando ainda ninguém teria sonhado, sequer, nos da vida de hoje – nos não haviam roçado pela epiderme, nem tão pouco pela mente. Era estática a vida económica e social desse tempo, principalmente nas vilas e nas aldeias, podendo mesmo afirmar-se outro tanto em respeito às pequenas cidades provincianas.
A nossa vila natal, a que o senhor rei D. Dinis, construindo-lhe o forte castelo ao tempo em que ela se chamava apenas Vide, logicamente ampliou o nome, situada a meia e igual distância entre o norte e o sul de Portugal, mas crescendo do solo montanhoso e verde junto às partes de Castela, era há mais de sessenta anos silente mansão de paz contemplativa e religiosa, recolhida e friorenta na aspereza dos dilatados Invernos, mas afestoada de virentes ramarias e de rosas perfumadas quando, já adiantada a Primavera, Virgílio e Bernardim, de braço dado, deambulavam sobre as relvas macias, na carícia do ar morno, temperado sob a folhagem verde e translúcida. Os anos decorriam e, placidamente, os preços de tudo quanto era necessário à manutenção de cada um e de todos honestamente se mantinham do ano decorrente para o seguinte, tal como, outros sessenta anos antes, no Paço de Sintra se guardavam de um verão para outro os vestidos de caça das senhoras infantas, segundo informação que, a tal respeito, o ilustre conde de Sabugosa nos deixou. Quando, há seis décadas, se falava da guerra entendia-se referir coisa arcaica, que passara à história. e como história, nas histórias que as boas Avós nos contavam, se referiam ainda as misérias dos franceses das invasões, arrombadores e ladrões de túmulos. E também elas nos contavam as misérias maiores, mais íntimas e mais recentes da guerra civil, travada por dois partidos, ambos pretendendo governar sobre um povo de ignorantes e atrasados. Mas, entendia-se - doce miragem! - que nunca mais haveria guerras...
Ainda corriam os patacos e subsistiam. já muito puídas, moedas de prata de cinco tostões, de dois tostões e de um tostão com a efígie do rei D. Pedro V com a primeira destas moedas, correspondente a quatro centavos de hoje, compravam-se um arrátel, - ou seja meio quilo pelo peso velho, que não chegava a bem aos quinhentos -gramas - de açúcar, ou um pão de trigo de peso igual ou um côvado de chita vistosa.
Com quatro vinténs e meio, ou sejam nove centavos, já se adquiria uma vara (que era um metro e pico) de pano-cru, e com uma pequena moeda de dez réis, igual a um centavo, se comprava nas tendas três caixas de palitos, dos chamados de espera-galego, para acender o lume e as luzes de azeite nos velhos candeeiros de latão. Veja-se por onde tudo isso anda, a esta hora, e a tendência para tudo subir até ao infinito!
Certo que os fenómenos de ordem económica contêm em si a explicação desta marcha infernal para o impossível. Mas essa explicação está longe de satisfazer os que padecem, atropelados pelas botas ferradas e pela ânsia dos grandes ambiciosos, que desejam ser e conseguem ser os supremos senhores do Mundo.
Em vão este meio século agora findo tem sido marcado por constantes reivindicações de ordem económica e social, algumas delas acompanhadas pelas indicações do Cristianismo, de que o notável pontífice Leão XIII se fizera porta-voz. Outras tomaram certo carácter alarmante na vida internacional, não tanto pelo pensamento extremista que as informa, mas por servirem de capa ao mais revoltante imperialismo político, deixando a perder de vista o que a Alemanha diligenciou estabelecer no Mundo.Pois nem por isso deixam de se criar fortunas de nababos, nestes mesmos dias de tortura económica para tantos. Há quem, pela ambição da riqueza, lance mão de todos os meios e, uma vez atingida a culminância da fortuna material, mesmo quando o respectivo conceito social anterior haja sido precário, ganhe consideração pública e oficial, com menosprezo da gente honesta, que fica na cauda triunfal desses grandes vencedores, ainda quando eles hajam começado a sua carreira por nefandas e criminosas actividades. A par destes actuam grandes videiros, cabotinos de provados recursos imiscuindo-se na política, na imprensa e mesmo na religião, forças que por vezes se encontram ao serviço de Cagliostro sem darem por isso. A alguns, chamando-lhes super-homens e gorduchos, se referia, há tempo, desolado. o órgão católico eborense «A Defesa».

Grandes tempos, esses, em que na vila as Senhoras gradas usavam vestido de ternure, com a saia arrastando, ou tomada por uma das mãos se sua dona não queria que arrastasse. Mas, ai da senhora que, tomando-a a erguesse acima do artelho… Ainda nessa noite, ao serão, o caso seria tema de graves considerações em conversas de outras senhoras mais discretas e, possivelmente, até em conversas masculinas na botica do partido contrário ao da imprudente.
(…)

Nos serões frios de Dezembro, em redor da lareira ou da braseira de picão as Avós suspendiam os contos, as lendas e as décimas que encantavam os netos ou o relato das truculências da guerra civil, para se ouvir cantar os Reis, que os rapazes, conduzindo seu iluminado presépio em caixa de madeira, vinham entoar na escada das residências em que se lhes afigurava como certa a retribuição. Os divertimentos públicos da noite eram raros grupos de pelotiqueiros que, lá de meses a meses, apareciam na terra e à noite, à luz dos fogachos de petróleo, davam espectáculo na praça com grande concorrência do público. Também apareciam barracas de vistas e de figuras de cera, como as de D. Pepino e D. Matilde, que fizeram demora de largos meses. Ainda então se ouvia falar das comédias, que muitos que ainda viviam tinham visto no castelo. E certa tradição menos recente informava que, do terreiro da cidadela, junto à torre de menagem, subira em balão um arrojado espanhol, que fora, depois, cair no telhado duma casa da Conceição.
Tela em óleo do Meste Ventura Porfírio
Cortesia do GA de Castelo de Vide
Só aí por noventa e três renasceu, com pleno êxito e duração de alguns anos, uma interessante organização teatral, constituída pelos elementos mais cultos da terra, actuando na grande caserna da parte do castelo que poderemos denominar pela alcáçova. Já a esse tempo D. João da Câmara, de todos tão querido na vila, a tinha deixado, quando esse grupo de amadores levou à cena, naquele velho edifício militar, nada menos que o Solar dos Barrigas, um tanto reduzido na contextura e que, por isso, recebeu na emergência o nome de Palácio dos Barriguinhas, peça de grande representação composta por aquele ilustre comediógrafo em parceria com o seu amigo Gervásio Lobato e com Ciríaco de Cardoso, autor da música.
E o bom Gervásio, que nunca aí viera em tempo do seu dilecto amigo, não quis morrer sem visitar Castelo de Vide. Estamos a vê-lo, e à sua esplendorosa calva, à sacada de um palacete na mesma rua em que morou D. João da Câmara, muito alegre, muito contente e muito feliz, - por bem acolhido e por todos melhor festejado». In «No Alto Alentejo, Crónicas e Narrativas», João António Gordo, edição de Grupo de Amigos de Castelo de Vide, páginas 21-25, 2ª edição, Abril de 2004, ISBN 972-99218-0-6
Cortesia de GACVide/JDACT