quinta-feira, 27 de maio de 2010

Samuel Usque: «Consolação às Tribulações de Israel». Um catecismo judaico para uso de cristãos-novos em ruptura com a tradição judaica

Cortesia do Instituto Camões
Consolação às Tribulações de Israel, publicado em Itália, em Ferrara, em 1553, por um autor judeu português, Samuel Usque. Na forma de um diálogo pastoril ficcionado, o texto – que é de uma grande beleza poética – propõe-se «consolar» os judeus portugueses, mantendo viva, perante as tribulações sofridas pelos judeus em Portugal, a promessa messiânica de paz e libertação para o povo de Israel – hoje ainda, e de novo, tão ameaçadas.
Começando por evocar a história dessas tribulações ao longo dos tempos, o narrador descreve o modo específico delas pelo terrível tratamento dado aos judeus, ditos «Senhores do Desterro em Portugal» bem como noutros países europeus, durante a Inquisição e mesmo antes, no tempo de D. João II.
Trata-se, segundo Lúcia Liba Mucznik, de «um catecismo judaico para uso de cristãos-novos em ruptura com a tradição judaica», para o qual o Autor utiliza a sua melhor «arte de persuadir» com um propósito didáctico. O estilo de Usque repercute uma forte intertextualidade com textos bíblicos, mostrando ritmos, imagens, construções do discurso, que o ligam à literatura hebraica. Isso, juntamente com as formas da sua imaginação, confere ao texto, dentro do contexto da literatura portuguesa, uma posiçãosingular; conforme a expressão de Yosef H. Yerishalmi: «um clássico judaico em língua portuguesa». A Consolação parece condensar essa matriz futurante, utópica no sentido próprio, da cultura judeo-cristã e, nesse sentido, talvez possa dizer-se que neste texto de algum modo se enraíza o topos sebástico, que marcará a nossa cultura de quase todos os tempos. Samuel Usque escolheu escrever em português. E essa decisão é por si justificada no «Prólogo» da obra: «desconveniente era fugir da língua que mamei e buscar outra prestada pera falar aos meus naturais». In Fundação Calouste Gulbenkian 

Consideraremos à parte da prosa de ficção um conjunto de obras que, embora contenham elementos ficcionistas, tais como a alegoria, o diálogo e a descrição de visões, se caracteriza todavia pelo predomínio dos motivos religiosos. Não pode falar-se, na literatura portuguesa, de uma literatura propriamente mística, entendendo-se como tal aquela que exprime, por meios estilísticos tendentes à sugestão emocional, uma experiência imaginada ou experimentada de contacto directo com a divindade. Nada na literatura portuguesa se pode comparar às Moradas de St., Teresa de Ávila ou às obras de S. João da Cruz. Não parecem numerosas as obras que é usual classificar como ascéticas, isto é, as que se ocupam dos preceitos que levam à perfeição espiritual e preparam para o gozo da união com Deus (género que tem a sua melhor expressão na Imitação de Cristo). Deve todavia ressalvar-se que os textos de devoção não têm sido sistematicamente explorados pelos historiadores da literatura. O grande êxito que tiveram as obras de Frei Luís de Granada, autor de língua castelhana, mas que viveu e editou em Portugal, é significativo da existência de um público numeroso para este género de obras.
Entre as poucas obras de inspiração religiosa que seguidamente vamos examinar, inclui-se uma de cunho hebraico e publicada em Itália. Embora adoptando a ficção pastoril, a sua inspiração é fundamentalmente bíblica, e o seu tema nada tem que ver com o bucolismo, excepto a descrição idealizada de um lugar ameno campestre.

«Para uma visão completa, ainda que resumida, do Quinhentismo português, faltará dizer qualquer coisa da literatura doutrinária. Diferente da que se produziu na época anterior, dirige-se por vários caminhos e reflecte tendências nem sempre ortodoxas ou cortesãs. Podia-se dividi-las em dois tipos: laica e religiosa. A primeira é representada, especialmente, pela Consolação às Tribulações de Israel (1553), do judeu português Samuel Usque (nada se conhece de sua vida). Sendo de si pouco importantes como Literatura, pois seu objectivo não-ficcional situa-as fora do terreno literário propriamente dito, só encerra maior interesse, pondo de parte o valor documental, doutrinal ou estilístico, a primeira dessas obras. De facto, Samuel Usque impregna a obra de muita comoção, mercê de sua condição judaica, aliada a forte sentimentalidade e sensualidade de raiz artística. Essas qualidades servem de base a um escritor apaixonado, que se coloca inteiro na obra, onde procura retratar os horrores da perseguição a seus irmãos de sangue e religião. E, assim, fecha-se o Classicismo português, não sem deixar saldo credor para a época seguinte, graças às linhas cruzadas que lhe formaram a estrutura, e um imponderável conteúdo ideológico que transmite como herança para o século XVII, época do Barroco». In Massaud Moisés, A Literatura Portuguesa

Cortesia de Massaud Moisés
A Consolação às Tribulações de Israel (Ferrara, 1553), do judeu português emigrado em Itália Samuel Usque, é constituída por três diálogos entre pastores (Icabo, Numeu e Zicareu – anagramas de nomes judaicos) e tem como propósito rememorar as perseguições sofridas pelo povo bíblico e recordar-lhe as divinas promessas de resgate. Parece à primeira vista estarmos simplesmente em presença de um livro de forma bucólica e de fundo religioso: tudo são reflexões e queixumes acerca das matanças, das escravizações, vexames, padecimentos sofridos pelos Israelitas, em constante paráfrase de textos bíblicos e históricos, ou sobre recordações familiares, mitigando-se o sofrimento com a consolação das profecias e dos mistérios cabalísticos (a transmigração das almas, os poderes ocultos). No entanto, o pastoralismo de Usque vai talvez mais fundo do que o dos outros bucólicos portugueses, dado que a Bíblia, em que as suas alegorias se apoiam constantemente, elabora a história e as crenças de um novo nómada, ao passo que o bucolismo de Teócrito e Virgílio é muito mais evoluído em relação às raízes do género. A imaginação literária, o estilo de Usque constituem talvez por isso um caso único na nossa literatura quinhentista, se descartarmos um certo parentesco com a obra em prosa de Bernardim.

Depara-se-nos em Samuel Usque o estilo bíblico, em que o liame lógico é indirectamente dado por alegorias e metáforas simples (ao nível suposto de uma cultura de pastores), com repetições insistentes, com descrições pitorescas de circunstâncias que, logicamente, nada fazem ao caso, mas inculcam uma representação imaginosa das ideias. Este processo é sobretudo sensível no 1.° diálogo, Diálogo pastoril sobre as cousas da Sagrada Escritura, o mais abundante em descritivo campestre, traçando um quadro paradisíaco anterior às atribulações israelitas. Icabo (anagrama de Jacob), que no simbolismo bíblico se confunde corporeamente com o próprio povo judaico (também representado, aliás, pelas suas ovelhas), não entra na matéria histórica dos seus lamentos sem primeiro nos dar todo o lento desenrolar de um dia de pascigo, parece que hora a hora, rês a rês, numa contemplação logicamente preguiçosa que mal suporta substantivo sem adjectivação pitoresca, verbo sem adverbiação esmiuçadora, em longos períodos enumerativos que, ainda assim, não dispensam um espraiamento parentético de longe a longe.

Sannazzaro não deixou de concorrer para este pastoralismo, pois certas paráfrases suas já foram reconhecidas pelos eruditos. Mas, mais do que a écloga, domina a inspiração do autor o versículo imaginoso e ritmado dos cânticos das Escrituras, o que ainda mais se evidencia se desse trecho descritivo passarmos às lamentações. Aí parece até que a exigência de melopeia, o tom agridoce dos lamentos e interrogações, ritmo de balanceamento ou intensificação gradativa preexistem à própria significação das frases e a comandam: «...Quando cansarão meus males e fadigas, minhas enjúrias e ofensas, minhas saudades e misérias, as feridas n’alma e minhas magoas, as bem-aventuranças longas e tão cansadas? E quando terá paz tanta guerra contra o fraco sujeito, temor, suspeita, receios de minhas entranhas? Té quando gemerei, suspirarei, matarei a sede coas lágrimas de meus olhos?»
Cortesia de ruadajudiaria
(Quatro Escritores da Prosa Doutrinal Religiosa)
Cortesia dos Profs. António José Saraiva e Óscar Lopes/JDACT